Contardo Calligaris (além de tudo, psicanalista também), publicou. Para mim, perfeito! Por isso compartilho aqui:
CONTARDO CALLIGARIS
O verdadeiro petista
A vida moderna é cansativa. Não estou pensando na correria, na
competição forçada, na expectativa constante de crescimento (aprenda mais, ganhe mais, compre mais, namore mais, transe mais, "seja"
mais).
Tudo isso pode, de alguma forma, ser administrado, mas sem grande
resultado: o cansaço permanece. Por quê?
A explicação é simples: não é a vida, é a subjetividade moderna que
é cansativa. Já faz séculos que vivemos, no fundo, sem regras.
Claro, há hábitos morais e princípios nos quais acreditamos, mas,
justamente, eles valem só porque queremos respeitá-los.
Todas nossas escolhas, em última instância, são questões de foro
íntimo; nós devemos decidir, a cada instante, se o que é legal ou
conforme aos costumes coincide com o que NOS parece certo ou justo.
Agir segundo os costumes e a lei não basta para justificar nem para
desculpar. "Fiz assim porque é o que todos fazem ou porque assim
manda a lei", para nós, não é uma razão suficiente, visto que
respeitar os costumes ou a norma é uma escolha nossa.
Na clínica psicoterápica, aliás, constata-se que as culpas dolorosas não são as culpas por ter transgredido leis e costumes, mas as
culpas por ter deixado de escutar nossa voz interior, por ter
deixado de seguir nosso desejo ou nossa consciência moral.
Em suma, o que é extenuante, na modernidade, é ser sujeito.
A esse cansaço responde uma nostalgia de tempos passados, em que as
regras e a tradição se encarregariam de decidir por nós: apelos
aos "valores" perdidos, aspirações a uma vida simples e rural,
vocações monásticas.
Mas a grande "cura" desse cansaço é oferecida pelas paixões de
grupo, que afogam nossa incerteza no funcionamento coeso de uma
coletividade onde esqueceríamos a tarefa de sermos sujeitos para
sermos apenas (alívio) funcionários exemplares.
Uma vez que
estivermos perdidos no grupo, a extenuante pergunta íntima sobre o
bem e o mal poderá ser substituída pela questão, mais
simples: "Agimos ou não como o grupo manda? Fomos ou não seus
instrumentos adequados?".
Os grupos que preenchem essa função estão ao serviço da covardia do
sujeito: "A tarefa de decidir no foro íntimo é cansativa? Pois bem,
há grupos que oferecem férias, férias da subjetividade".
Um exemplo: um bando de torcedores cruza alguém que se aproxima do
estádio com uma bandeira do time oposto. Um torcedor do bando
arranca a bandeira das mãos do "inimigo". Em seu estado normal,
longe do grupo, o torcedor poderia se perguntar: "Quem sou eu? Um
sujeito com história, família, valores, pensamentos próprios? Ou me
defino apenas como um torcedor? Quem dita meus atos é minha complexa subjetividade ou o grupo ao qual pertenço hoje?".
A história fornece exemplos menos inócuos:
Há as palavras de Stálin aos camaradas que mostravam um certo
desconforto na hora de arrancar aos camponeses russos seus míseros
meios de subsistência: elas fazem apelo à necessidade, para os
bolcheviques, de serem, como se dizia, "homens de ferro", ou seja,
homens de palha de um grupo que os aliviava da responsabilidade de
seus atos ("Stálin, a Corte do Czar Vermelho", de Simon Montefiore,
acaba de sair em português; é imperdível).
Há o famoso discurso de Himmler aos oficiais SS que se dedicariam
à "solução final": salienta a necessidade de eles se mostrarem "à
altura" da tarefa genocida, ou seja, de esquecerem os escrúpulos, as compaixões e aquelas "picuinhas" que atormentam e cansam a
subjetividade moderna, para que pudessem "ser" SS e exterminar
sem "fraquezas".
Dediquei meu doutorado à sedução que é exercida pelos grupos que
autorizam seus membros a descansar e a desistir de sua
subjetividade. Mantive a tese inédita talvez porque sua questão
central me parecesse pertencer a uma outra época, à época "passada"
dos totalitarismos.
Pois bem, acho que vou mudar de idéia graças ao deputado Jorge
Bittar, que, nestes dias, mostrou-me que a questão continua viva e
urgente. A tentação de sacrificar "escrúpulos" morais, de esquecer o foro íntimo e deixar o grupo decidir por nós não é coisa do passado.
Está dormindo num canto, esperando momentos propícios.
Jorge Bittar, deputado do PT, não gostou do relatório da CPI dos
Correios (ou seja, achou que o relatório não era partidário como ele queria que fosse) e xingou o senador Delcídio Amaral, presidente da
dita CPI, também do PT. Além das palavras chulas -as quais
substituem uma violência que, num Estado democrático, não pode ser
física (não dá para eliminar Delcídio, eh?)-, ele disse (frase
impagável) que o senador não se portou "como um verdadeiro petista".
Para quem desiste de ser sujeito para se fazer instrumento do grupo, o outro, o que escuta seu foro íntimo, é um "traidor".
Não é a Câmara, mas o PT que deve condenar oficialmente as palavras
de Jorge Bittar. Ou então deveremos entender que o PT é um daqueles
grupos que oferecem férias à subjetividade de seus membros, ou seja, que pedem que eles ajam não segundo a complexidade da consciência,
não segundo o que lhes parece certo ou errado, mas só como
instrumentos ao serviço do partido.
O verdadeiro petista
A vida moderna é cansativa. Não estou pensando na correria, na
competição forçada, na expectativa constante de crescimento (aprenda mais, ganhe mais, compre mais, namore mais, transe mais, "seja"
mais).
Tudo isso pode, de alguma forma, ser administrado, mas sem grande
resultado: o cansaço permanece. Por quê?
A explicação é simples: não é a vida, é a subjetividade moderna que
é cansativa. Já faz séculos que vivemos, no fundo, sem regras.
Claro, há hábitos morais e princípios nos quais acreditamos, mas,
justamente, eles valem só porque queremos respeitá-los.
Todas nossas escolhas, em última instância, são questões de foro
íntimo; nós devemos decidir, a cada instante, se o que é legal ou
conforme aos costumes coincide com o que NOS parece certo ou justo.
Agir segundo os costumes e a lei não basta para justificar nem para
desculpar. "Fiz assim porque é o que todos fazem ou porque assim
manda a lei", para nós, não é uma razão suficiente, visto que
respeitar os costumes ou a norma é uma escolha nossa.
Na clínica psicoterápica, aliás, constata-se que as culpas dolorosas não são as culpas por ter transgredido leis e costumes, mas as
culpas por ter deixado de escutar nossa voz interior, por ter
deixado de seguir nosso desejo ou nossa consciência moral.
Em suma, o que é extenuante, na modernidade, é ser sujeito.
A esse cansaço responde uma nostalgia de tempos passados, em que as
regras e a tradição se encarregariam de decidir por nós: apelos
aos "valores" perdidos, aspirações a uma vida simples e rural,
vocações monásticas.
Mas a grande "cura" desse cansaço é oferecida pelas paixões de
grupo, que afogam nossa incerteza no funcionamento coeso de uma
coletividade onde esqueceríamos a tarefa de sermos sujeitos para
sermos apenas (alívio) funcionários exemplares.
Uma vez que
estivermos perdidos no grupo, a extenuante pergunta íntima sobre o
bem e o mal poderá ser substituída pela questão, mais
simples: "Agimos ou não como o grupo manda? Fomos ou não seus
instrumentos adequados?".
Os grupos que preenchem essa função estão ao serviço da covardia do
sujeito: "A tarefa de decidir no foro íntimo é cansativa? Pois bem,
há grupos que oferecem férias, férias da subjetividade".
Um exemplo: um bando de torcedores cruza alguém que se aproxima do
estádio com uma bandeira do time oposto. Um torcedor do bando
arranca a bandeira das mãos do "inimigo". Em seu estado normal,
longe do grupo, o torcedor poderia se perguntar: "Quem sou eu? Um
sujeito com história, família, valores, pensamentos próprios? Ou me
defino apenas como um torcedor? Quem dita meus atos é minha complexa subjetividade ou o grupo ao qual pertenço hoje?".
A história fornece exemplos menos inócuos:
Há as palavras de Stálin aos camaradas que mostravam um certo
desconforto na hora de arrancar aos camponeses russos seus míseros
meios de subsistência: elas fazem apelo à necessidade, para os
bolcheviques, de serem, como se dizia, "homens de ferro", ou seja,
homens de palha de um grupo que os aliviava da responsabilidade de
seus atos ("Stálin, a Corte do Czar Vermelho", de Simon Montefiore,
acaba de sair em português; é imperdível).
Há o famoso discurso de Himmler aos oficiais SS que se dedicariam
à "solução final": salienta a necessidade de eles se mostrarem "à
altura" da tarefa genocida, ou seja, de esquecerem os escrúpulos, as compaixões e aquelas "picuinhas" que atormentam e cansam a
subjetividade moderna, para que pudessem "ser" SS e exterminar
sem "fraquezas".
Dediquei meu doutorado à sedução que é exercida pelos grupos que
autorizam seus membros a descansar e a desistir de sua
subjetividade. Mantive a tese inédita talvez porque sua questão
central me parecesse pertencer a uma outra época, à época "passada"
dos totalitarismos.
Pois bem, acho que vou mudar de idéia graças ao deputado Jorge
Bittar, que, nestes dias, mostrou-me que a questão continua viva e
urgente. A tentação de sacrificar "escrúpulos" morais, de esquecer o foro íntimo e deixar o grupo decidir por nós não é coisa do passado.
Está dormindo num canto, esperando momentos propícios.
Jorge Bittar, deputado do PT, não gostou do relatório da CPI dos
Correios (ou seja, achou que o relatório não era partidário como ele queria que fosse) e xingou o senador Delcídio Amaral, presidente da
dita CPI, também do PT. Além das palavras chulas -as quais
substituem uma violência que, num Estado democrático, não pode ser
física (não dá para eliminar Delcídio, eh?)-, ele disse (frase
impagável) que o senador não se portou "como um verdadeiro petista".
Para quem desiste de ser sujeito para se fazer instrumento do grupo, o outro, o que escuta seu foro íntimo, é um "traidor".
Não é a Câmara, mas o PT que deve condenar oficialmente as palavras
de Jorge Bittar. Ou então deveremos entender que o PT é um daqueles
grupos que oferecem férias à subjetividade de seus membros, ou seja, que pedem que eles ajam não segundo a complexidade da consciência,
não segundo o que lhes parece certo ou errado, mas só como
instrumentos ao serviço do partido.
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