17 novembro, 2007

Guias para uma viagem (ao) interior (*)



À entrada de uma caverna, deparo-me com três guias turísticos que me fazem propostas distintas:

O primeiro, com uniforme próprio e aparência de experiente e seguro, interroga-me sobre o motivo que me levou ali. Digo-lhe de meu desejo de conhecer a famosa gruta. Confesso-lhe meus receios, medo de entrar e ansiedade pelo que poderia encontrar lá dentro. Termino assim:
- Sr. Guia, o que tenho? Como fazer para resolver isso?
Após anotar tudo numa ficha, meu nome e dados pessoais, pergunta-me sobre minha família e, diz:
- O sr. tem uma espeleofilia associada a uma espeleofobia de origem idiopática. Siga minhas instruções e tudo será resolvido.

O segundo guia, cuja indumentária não o distinguia das demais pessoas, escuta minha demanda com solícita atenção e fala:
- Compreendo seu conflito. Entraremos juntos. Na medida em que você sentir alguma coisa, algum incômodo, alguma curiosidade, explicar-lhe-ei tudo. Fale à vontade, expresse quaisquer sentimentos e caminhe no seu ritmo: estarei sempre por perto. Aos poucos, se esclarecerá o medo e vai conseguir dominá-lo.


O terceiro guia escutou-me com atenção e solicitou-me que falasse um pouco mais. Explicasse melhor o que eu queria. Era minucioso! Quase nunca concluía ou opinava. Seu silêncio estimulava-me a continuar.
Finalmente, convidou-me a entrar na caverna escura e desconhecida para mim e fez uma proposta estranha e instigante:
- Nessa viagem (ao) interior, você deverá falar tudo que lhe vier à cabeça. Não esconda nada, por mais absurdos ou inconvenientes que pareçam seus pensamentos, idéias, os sentimentos e seus sonhos. Pode ser que surjam lembranças, experiências, personagens remotos de sua vida... Teremos, provavelmente, um passeio longo. É possível que você descubra coisas impensáveis, esquecidas e, mesmo, valiosas. Quem sabe o que, de verdade, você teme? Se isso acontecer - para isso estou aqui - então você poderá assumir todo seu desejo. Conhecendo-o, saberá para onde ir e o que buscar. Não será fácil. Vamos?

Certamente caricatural, essa analogia me ocorre, com freqüência, quando tento explicar o modus operandi do psiquiatra, do psicólogo e do psicanalista.
Diante do mesmo paciente, suas propostas de trabalho serão, com certeza, diferentes, pois seus métodos e técnicas se sustentam em teorias diversas. Ninguém poderá garantir os resultados, embora alguns profissionais se considerem deuses infalíveis, oniscientes e poderosos.

SE não encontrar o “guia” que lhe convém, o viajante deverá reformular sua demanda.

Um guia não poderá avaliar o outro a partir dos próprios princípios, uma vez que a coerência interna de uma teoria, aliada à prática, jamais alcançará isenção suficiente, ou a neutralidade epistemológica ideal.
Psiquiatria, Psicoterapia e Psicanálise são campos distintos. Às vezes se opõem e se contradizem, outras vezes se aproximam, chegam à interseção e podem interagir.

O que vai definir a escolha de um ou outro profissional e sua “arte” de trabalhar pode ser a demanda, a sorte, o azar, um anjo ou um diabo. Entretanto, é necessário que não nos enganemos, já que, na maioria das vezes, o cliente é aquele que diz:

- Dr., ajude-me a mudar sem que nada mude.

Psiquiatra, Psicólogos ou Psicanalista?

Psiquiatra é aquele profissional que cursou a Faculdade de Medicina e se especializou no tratamento de doenças mentais. Antes de tudo, um médico que deve fazer diagnósticos e pode prescrever medicamentos, remédios, fármacos.
O Psicólogo, por sua vez, cursa uma faculdade de Psicologia e, na clínica, especializa-se em alguma técnica psicoterápica. Trabalha com técnicas diversas, individualmente ou em grupo, mais ou menos diretivos. Alguns se encaminham para as organizações, empresas, dão consultoria, fazem seleção profissional, etc.

Tanto um quanto outro podem fazer formação psicanalítica, passando pelo processo de sua própria análise e, aí, tornando Psicanalistas.
Estes, embora tenham por fundamento a teoria freudiana do inconsciente (Sigmund Freud), podem desempenhar seu ofício de acordo com linhas teóricas consequentes aos seguidores do fundador: kleinianos (Melanie Klein), winnicottianos (Donald Winnicott), junguianos (Carl Gustav Jung), lacanianos (Jaques Lacan) - para citar os mais comuns. Explicam o adoecimento a partir de conflitos internos entre forças contraditórias dentro do próprio indivíduo, principalmente na repressão aos impulsos sexuais, etc.

Dentre os próprios Psiquiatras - todos médicos -, podemos encontrar:
a) os psiquiatras mais organicistas ou biológicos, que defendem a idéia de que o adoecimento psíquico é devido a alterações bioquímicas, problemas com os chamados neurotransmissores - substâncias que fazem a transmissão dos impulsos nervosos dentro do cérebro, tipo: dopamina, serotonina, noradrenalina, norepinefrina, ácido gamaaminobutírico. Consequentemente são mais adeptos da medicação e sempre tratam com remédios.
b) Outros, em geral, passaram por uma experiência analítica ou psicoterápica, e consideram o uso da palavra (talk therapy) como o recurso terapêutico fundamental, sem dispensar o uso dos fármacos, cada dia mais e mais eficazes. Dispõem-se, entretanto, a "escutar" o que o paciente tem a dizer (ou teme dizer).

Alguns pacientes referem-se a estes dois grupos com expressões do tipo:
a)psiquiatra médico – o que só receita remédio –
b)psiquiatra psicólogo – aquele que conversa!

É evidente que tal polaridade esconde duas armadilhas a serem evitadas:
“A primeira é o medicalismo, que responde ao pedido de ‘remédio’ com a solução química, tida como mais rápida e eficaz, como se não houvesse outro ‘remédio’ para o sofrimento.
A segunda é o psicologismo, que responde ao pedido de soluções para o ‘trauma’ , entendido como ameaça ou castigo psicológico por uma conduta errada, com a tarefa moral de corrigir o erro através de uma pedagogia supostamente esclarecida”. (Ana Cristina Figueiredo)
Qualquer simplificação pode ser prejudicial ao suposto paciente: negar-lhe a escuta em nome da causalidade puramente neurofisiológica ou negar-lhe a ajuda química, sob pretexto de que todo o adoecimento é 'psíquico' ou 'social' ou 'falta de vontade', etc.

Não cair nessas armadilhas foi o que, surpreendentemente, conseguiu um clínico, aluno meu em um dos cursos que ministrei para profissionais da rede pública em Belo Horizonte:
Relatou o acontecido num Posto de Saúde, quando, diante da falta do cardiologista, uma senhora muito nervosa, esbravejante, ameaçava chamar a TV para testemunhar a “desorganização” do serviço.

Nosso clínico se prontificou a atendê-la.
Pediu a receita anterior do cardiologista, para fazer a prescrição. A senhora imediatamente saca da bolsa um papel dobrado, entrega-o ao médico, que constata, surpreso, tratar-se de uma Certidão de Casamento! A mulher, logo, percebe o engano (ato falho?) e quer retomar o papel:
– Doutor, eu me enganei.
O médico, de pronto, retruca:
- Estou vendo que seu problema é, realmente, de coisas do coração.

Foi o que bastou para a paciente, surpresa, assentir com a cabeça. De imediato principia a narrar suas atribulações conjugais. Ao final, ela própria pede para ser encaminhada ao serviço de Psicologia. E, é claro, prescreveu-lhe o antihipertensivo, pois a hipertensão era real.

Moral da história: cada turista tem o guia que merece.

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(*)Republicado.

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