Confesso que de Marcel Proust e seus sete volumes semi-autobiográficos compilados em À la Recherche du Temps Perdu só li, mesmo, o manjadíssimo episódio das madeleines [No Caminho de Swann]. Proust dá uma primeira mordida no tradicional bolinho francês, tão comum, e é invadido por lembranças inconscientes:
“Mas no mesmo instante em que aquele gole de bebida envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim”.
Enquanto isso, Amélia começa a separar os ingredientes para o lanche da tarde de domingo. Nenhuma sofisticação, a não ser as 200g de amêndoas torradas e moídas, os ingredientes estão logo ali: 250g de farinha de trigo, a mesma quantidade de açúcar e outro tanto de manteiga ou margarina.
Marcel Proust é minucioso quando tenta explicar o que lhe acontecia, enquanto sorve mais uma xícara de chá: “Invadiu-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa (...) Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal”.
Da sala, onde leio desimportâncias, escuto o ruído do batedor de bolos e imagino a cena: Amélia já mistura o açúcar à meia dúzia de ovos, acrescenta as amêndoas moídas e a farinha.
No livro, o francês filosofa: “Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz”.
Na cozinha, é hora de colocar o fermento em pó, apenas meia colher de sopa, explica minha mulher. Vem à estante da sala e busca a garrafa de rum, usado aqui para enriquecer as receitas, dar gosto às passas e aos bolos. Bastam 2 colheres de sopa da bebida caribenha e mais meia colher de essência de baunilha.
O escritor, lá em Tempos Perdidos, esforça-se ainda por saber a origem dos sentimentos que lhe invadiram a consciência: “Peço a meu espírito um esforço mais, que me traga de volta a sensação fugitiva”. Conseguirá?
Mais ruído vem distrair meu espírito e constato que já é hora de despejar a massa espessa em forminhas previamente untadas. O forno já estava ligado, forno bando, que é para não tostar as delicadas madeleines.
Parece que Proust até se esqueceu de continuar seu lanche, pois só fala mesmo do que se passa: “... sinto estremecer em mim qualquer coisa que se desloca, que desejaria elevar-se, qualquer coisa que teriam desancorado, a uma grande profundeza; não sei o que seja, mas aquilo sobe lentamente; sinto a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas”.
Também sou desancorado da mesa da copa, pois é hora de preprará-la para o lanche. O ambiente rescende a olores diversos, combinando rum, baunilha e amêndoas torradas. As xícaras são dispostas, os pratinhos aguardam as iguarias, os meninos são convocados: Gente, o lanche está pronto!
O fato causador das lembranças será procurado (à la recherche) por páginas e mais páginas, até que Proust constata: "a verdade, o ser que em mim então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo extratemporal, repartido entre o dia antigo e o atual, era um ser que só surgia quando, por uma dessas identificações entre o passado e o presente, se conseguia situar no único meio onde poderia viver, gozar a essência das coisas, isto é, fora do tempo."
Então é isso: nem sempre conseguimos determinar a localização exata de um sentimento, enlaçá-lo com os fios da memória e guardá-lo como se faz com velhos retratos ou cartas amareladas. O tempo, este, nos consome e nos escapa, tempus fugit, e o melhor lugar é mesmo fora do tempo.
Aqui, Amélia inventa, como sói aos artistas, e surpreende com um creme ganache: Deve ficar uma delícia, justifica. Nem é preciso duvidar, estão mesmo deliciosas as madeleines da Amélia:
Madeleine com creme ganache by Amélia. (Foto by Cláudio Costa)
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