27 setembro, 2008

À mesa, como convém

Não foi hoje nem no ano passado, talvez tenha acontecido há 15 anos. A lembrança me assaltou agorinha mesmo, ao almoçar com Amélia e o filhote Leo, mais a Julinha dele.

Você já deve ter constatado que assunto puxa assunto, o que Freud chamaria de 'livre associação' e o mineiro simplesmente diz um causo puxa outro causo. Quer exemplo? Se alguém conta um acidente terrível, o amigo aparece com outro pior. Se você relata uma decepção, o desencanto alheio acabou de acontecer. E por aí vai.

Em restaurante é assim: enquanto o pedido não chega, belisca-se um tira-gosto (ou couvert, se o local for mais chique) e fala-se de... comida!

Pois foi a legítima livre associação que me transportou no tempo.
Fomos - Amélia & eu - comemorar aniversário de casamento no Mandrágora, outrora um dos melhores restaurantes portugueses daqui de Beagá. Cito-lhe o nome sem receio algum de ser desmentido, pois não existe mais, sumiu do mapa (não por minha culpa, juro!) e talvez ninguém se lembre dele.

O Mandrágora ficava pros lados da Savassi, próximo do local onde estávamos hoje. A região e a espera pelo prato que demorava desataram as amarras mnêmicas.

No Mandrágora, pedimos o prato mais conceituado: bacalhau gratinado ao molho branco sei-lá-de-quê e vinho, comme il faut. Seria um jantar à luz de velas, apetrecho que dá upgrade no romantismo, você sabe. Amélia estava linda, como sempre - continua linda até hoje, ao contrário do marido dela.

Demorava o garçom, quase tanto quanto contou outro dia a Elza, mas não nos incomodava. Estávamos em plena comemoração, tínhamos tempo e não nos perderíamos em contrariedades.

O garçom, enfim, anunciou um tanto afetado: "Posso servir o jantar?". Assenti com leve mesura, como pedia a ocasião.

Delicadamente pousou sobre a mesa um belíssimo gratinado, estalando de quente. Serviu primeiro a dama que me acompanhava.

Olhos nos olhos, tilintamos as taças e principiamos a comer:

- E aí, está gostando?
- É, parece que está bom, disse Amélia.
- E o bacalhau?
- Ainda não senti gosto algum.
- Eu também não.

Mais uma ou duas porções e... nada de bacalhau.
- Vamos chamar o garçon?
- É mesmo, ele já vem aí.
- Seu garçon, por favor, pode servir o bacalhau?
- Ele já está servido, senhor.
- Onde?
- No seu prato, senhor, com o molho.
- Interessante, não sentimos o gosto...
- É o melhor prato, senhor, nunca tivemos reclamação.
- Vou pedir-lhe uma coisa, talvez imprópria, mas não vejo alternativa. Prove e confira.

Meio a contragosto, recolhe a travessa e a leva de volta à copa. Minutos depois, retorna:
- Desculpe, senhor, houve um engano.
- Qual?
- A cozinheira se esqueceu de colocar bacalhau, senhor.

Amélia e eu nos entreolhamos e, como nos é típico, caímos na gargalhada:
- Bacalhau sem bacalhau, hahaha!

O garçom, sério:
- Os senhores nos desculpem. O gerente autorizou-me a serví-los corretamente. Já está sendo providenciado novo prato. Como prova de nossa consideração e sinceridade, não lhes cobraremos o jantar, exceto o vinho. Está bem assim?
- Claro! Afinal é nosso aniversário de casamento e o Mandrágora nos presenteará, não é mesmo?
- Será um prazer, senhor.

Jantamos um delicioso bacalhau ao molho de não-sei-o-quê, bebemos ótimo vinho e a noite apenas começava.
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O título deste post é homenagem aos velhos e bons tempos do Jornal do Brasil(RJ), quando eu lia a coluna de gastronomia do Apicius e não podia pagar sequer uma sardinha, quanto mais um bacalhau.

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