As lembranças infantis, ensina-nos a psicanálise, podem referir-se a fatos reais ou imaginários, constructos elaborados ao longo do tempo, fantasias encobridoras ou elaborativas. Podem ser formadas com fiapos de acontecimentos, condensando fragmentos de vivências em uma recordação bem estruturada, porém jamais acontecida como acreditamos que tenha sido.
Por isso, cabe ao analista desconfiar de explicações encontradas pelos analisandos para justificar a origem de seus sofrimentos, quando eles se aferram a tal ou qual lembrança, juram que o fato aconteceu e deduzem que, a partir de então, sofrem do sintoma atual.
Não se pode descartar a memória enxertada, quando se inoculam informações inverídicas a lembranças verdadeiras, a tal ponto que não mais se consegue distingui-las.
Alguém pode, pois, introduzir falsos elementos para que o recordado tenha linearidade, coerência e completude, principalmente quando faltam detalhes importantes, o que comprometeria a veracidade do relato.
Alguém pode, pois, introduzir falsos elementos para que o recordado tenha linearidade, coerência e completude, principalmente quando faltam detalhes importantes, o que comprometeria a veracidade do relato.
Fala-se de casos em que o adulto enxerta falsidades na mente de outrem, com objetivo de mascarar os reais acontecimentos, principalmente para livrar-se de alguma culpa ou obter certo tipo de vantagem. Por exemplo, em caso de casais separados, um dos parceiros pode inocular nos filhos ainda pequenos informações desabonadoras sobre a outra parte, numa tentativa de, mais tarde, justificar os próprios erros e garantir boa imagem.
Poderíamos discutir mais os fenômenos psico-emocionais que envolvem nossas lembranças, mas prefiro explorar uma anedota que acompanha minha biografia.
O fato que relatarei, com as ressalvas enunciadas acima, compõe meu acervo de memórias infantis e foi evocado a partir da foto abaixo:
Foto do album familiar da Família Costa (Nova Era-MG) |
Trata-se de fotografia pela qual tenho carinho especial, pois apareço com idade aproximada de 3 anos. Suponho que estivesse na ponta dos pés a estender a mão em busca de alguma guloseima sobre a mesa. Se quisesse inventar, diria que me esforçava para conseguir um brigadeiro... (é claro, porém, que seria uma lembrança enxertada ou fantasia pura).
Chama-me atenção o fato de ser a única criança a participar de uma refeição de adultos bem mais velhos, que nomearei da esquerda para a direita: meu avô Ilídinho, minha bisavó Mandidina, os tios-avós Otaviano e Sá Nôra, todos da linhagem paterna. Lembro-me com clareza de cada um deles , exceto da bisavó, que teria falecido um ano após esta foto.
Pois bem, a lembrança que relatarei, na verdade, talvez não seja propriamente uma lembrança, mas tem a força do testemunho de minhas tias e de meus pais.
Com efeito, são eles que me garantem a veracidade do episódio no qual fui protagonista, por ocasião do velório de Mandidina.
Lembro-me -já criei memória pessoal- de que acompanhava os preparativos do sepultamento de minha bisavó, quando os adultos (Tia Irani, em especial) enfeitavam o caixão com flores, guirlandas, fitas, etc. Num certo momento, deram-se conta da falta de barbante para fixar os arranjos florais.
Ao perceber o impasse, ofereço-me:
- Vou lá na venda (pequeno armazém do Vovô Ilidinho, a pouco mais de 200m) e busco!
De imediato, disparo a correr pela rua estreita e sem calçamento, uma poeira só. Carrego o rolo da loja e chego ofegante:
- Olha o barbante aqui!, exclamo.
Minha tia e as primas, impressionadas com minha presteza em resolver o problema, indo num pé e voltando noutro, começaram a elogiar-me:
- Que menino prestativo, educado, esse Claudinho...
Fico todo orgulhoso e digo com a maior naturalidade:
- Não se preocupem, quando morrer mais alguém, eu busco mais barbante!
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