07 abril, 2005

EXISTE A CRIANÇA?

Deparei-me, recentemente, com uma situação difícil, mas não rara: minha esposa (Amélia, psicoterapeuta) e eu (psiquiatra) atendemos a uma criança de 8 anos. Além de ser hiperativa, enfrenta sérias dificuldades no ambiente familiar (sujeita, portanto, a estresse constante).
Trata-se de um menino muito inteligente, com capacidades artísticas já comprovadas, muito afetivo e consciente de que precisa tratar-se. Comparece às sessões de psicoterapia com muita disposição. Infelizmente, sua identificação com "a doença" estabeleceu-se desde a mais tenra idade, uma vez que sua família se compõe de pessoas com alto nível intelectual, alguns da área médica e psicológica, de tal forma que os termos científicos aplicados ao seu quadro circulam a todo instante. Ao ingressar numa nova escola, no início deste ano, o próprio menino se definiu assim: "eu sou muito impulsivo, não posso ser contrariado, fico nervoso à toa". Um dos objetivos do tratamento é, exatamente, promover a desidentificação com a patologia, pois ele é muito mais do que um portador de TDAH. É uma criança, na plena acepção do termo!
Isso tudo não impediu que as crises de agitação e desafio às normas provocassem rejeição por parte do corpo docente e, pasmem, da parte de alguns pais de alunos, que pressionaram a escola para que o menino fosse afastado.
De novo, a exclusão se fez.
Agora, nosso pequeno paciente está em outra instituição, não sem "dar problemas", apesar de já ter iniciado o tratamento proposto: orientação familiar e para os professores, medicamento apropriado - com algum resultado benéfico - e psicoterapia.
O leitor: - Este blog está virando um tratado de psicologia?
Respondo: - É claro que não!
O leitor: - Mas prá que falar disso?
Respondo: Vocês já perceberam que "a criança (quase) não existe" em nosso mundo-blog? A gente navega, pula de site em site, nada de se falar de crianças, da situação da infância... quando muito, uma ou outra mãe - às vezes, o pai - que se reporta aos seus "lindos filhinhos", tudo muito cor-de-rosa.
Isto não é novidade.
Philippe Ariès , em dois livros indispensáveis (L'Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime [Seuil]) e História Social da Infância e da Família) já demonstrara que a criança não existia socialmente antes do seculo XX :
It did not exist at all in the Medieval period, grew into existence in the upper classes in the 16th and 17th centuries, solidified itself somewhat more fully in the 18th century upper classes, and finally mushroomed on the scene of the 20th century in both the upper and lower classes.
Ariès, após suas intensas pesquisas bibliográficas e iconográficas, demonstra que, até à idade média, "nas sociedades pré-industriais até meados do século XVIII, a vida era muito "dura", não havia ternura entre as pessoas, não se tinha a sensibilidade à flor da pele:
O clima social era muito duro, sofria-se e morria-se precocemente. Pode-se dizer, sem risco de ideologização, que havia uma real desigualdade diante da morte. Tratava-se de um tipo de sociedade da qual não se deve ter nostalgia nenhuma! Ainda mais, a criança, que nos interessa, a criança era, ela mesma, o ser mais mal amado naquela sociedade; ela morria ainda mais facilmente e mais precocemente que os adultos".
Les sociétés pré-industrielles, mettons jusqu'au milieu du XVIIIe siècle, sont des sociétés « dures », où l'on n'était pas tendre l'un avec l'autre et où l'on n'avait pas la sensibilité à fleur de peau. Le climat social y était très dur, on y souffrait et on y mourait tôt. On peut dire sans risque d'idéologisation, qu'il y avait une réelle inégalité devant la mort. Un type donc de société que nous ne devons nullement considérer avec une quelconque nostalgie. Plus encore, l'enfant, qui nous intéresse vous et moi, l'enfant était, lui, le plus mal aimé de cette société; il mourait encore plus facilement et plus vite que les adultes.
Será que, nos dias atuais, a situação de fato mudou?
Não se podem desconsiderar os
Direitos da criança promulgados pela Assembléia Geral da ONU em 20 de novembro de 1959, muito menos, entre nós, o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] (LEI N. 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990). Quem conhece esses dispositivos legais? Quem sabe os direitos dos jovens e as obrigações da sociedade para com as crianças e adolescentes? Quantos criticam sem conhecer? Taí porque digo que A CRIANÇA INEXISTE, ainda!
Esse tal do ECA só aparece na mídia para ser criticado, “por defender e proteger as crianças marginais, os pivetes que nos assaltam e irritam em todo sinal de trânsito!” Esquecem-se (ou nós nos esquecemos) que os ditames dessa lei são perfeitamente adequadas à proteção de TODA criança. Apenas em poucos artigos trata das medidas de proteção ao menor “infrator”.
Aliás, é significativo que se aplica o epíteto de “menor” somente aos filhos dos outros, aos marginais e excluídos: “menor abandonado, menor de rua, menor infrator”. Os nossos, não, estes são CRIANÇAS...
Entretanto, quantas crianças ainda estão excluídas da cultura, perambulam pelas ruas e campos, sem instrução, sem vocabulário, sem diversão, sem amparo, sem afeto?
Num excelente estudo, Walter Omar Kohan (confira em
Infância e Educação em Platão) nos recupera, de forma curiosa, os quatro traços principais de como era considerada a infância em Platão:
a) como possibilidade (as crianças podem ser qualquer coisa no futuro);
b) como inferioridade (as crianças — como as mulheres, estrangeiros e escravos — são inferiores em relação ao homem adulto cidadão);
c) como superfluidade (a infância não é necessária à pólis);
d) como material da política (a utopia se constrói a partir da educação das crianças).
O deus Mercado descobriu as crianças como novos consumidores, alvo de campanhas publicitárias, que vendem moda, entretenimento, programas de TV, filmes e livros. Será esta a inclusão social que interessa realmente aos infantes?
Algumas questões:
· Por que, ao chegar à vida adulta, mantemos um discurso politicamente correto acerca dos direitos das crianças e dos adolescentes, sem a exigência de uma prática pessoal e social inclusiva?
· Quanto tempo, cada um de nós, dispensa no trato com as "nossas" crianças?
· Qual o nível de indignação e efetivo protesto, diante dos absurdos que a mídia (leia-se: programas de TV) impõe sobre a infância?

Às vezes, acho que o mundo blog está servindo exclusivamente como palco ao nosso narcisismo e... foda-se o mundo!