23 maio, 2004

Nostalgia poética

Affonso Romano de Santana é poeta, ensaista, escritor. Em sua crônica de hoje, a propósito de uma viagem ao interior de Minas, incorpora o espírito proustiano de A la recherche du temps perdu e inspirado pelo topônimo da cidade que visitou, relembra um dos poetas que morreram cedo - conforme abordei no post anterior: Cassimiro de Abreu.
A crônica é deliciosa e vale a pena ser lida aqui:.Eu me lembro, eu me lembro.

Eis os versos:
Eu me lembro, eu me lembro! – Era pequeno

E brincava na praia; o mar bramia

E erguendo o dorso altivo, sacudia

A branca espuma para o céu sereno.

E eu disse a minha mãe nesse momento:

“Que dura orquestra! Que furor insano!

“Que pode haver maior do que o oceano

“Ou que seja mais forte do que o vento?”-

Minha mãe a sorrir olhou pr’os céus

E respondeu: – Um Ser que nós não vemos

“É maior do que o mar que nós tememos,

“Mais forte que o tufão! Meu filho, é – Deus!”.

Autodenúncia

As discussões sobre do poderio dos chefões dos traficantes, a partir de suas bases nos morros, se desdobram cada vez mais. De um lado, acusa-se o Governo de não exercer suas atribuições, deixando à míngua um contingente enorme de marginalizados sociais que, diante da falta absoluta de perspectiva, enveradam pelo caminho da contravenção e do crime, servindo de "soldados" dos morros, "aviões" e "sentinelas" nas bocas-de-fumo e drogas. A terminologia escancara que a guerra já está aí.
Por outro lado, há uma crescente conscientização a respeito do financiamento dessa máquina mortífera, sugerindo perguntas tais como: -"Quem consome e paga pela droga, injetando dinheiro no esquema do tráfico?"
Veja-se o artigo
Eu ajudei a destruir o Rio, do jornalista
Sylvio Guedes, editor-chefe do Jornal de Brasília, no qual ele critica o "cinismo" dos jornalistas, artistas e intelectuais ao defenderem o fim do poder paralelo dos chefes do tráfico de drogas. Guedes desafia a todos que tanto se drogaram nas últimas décadas que venham a público assumir: "eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro!"
"É irônico que a classe artística e a categoria dos jornalistas estejam agora na, por assim dizer, vanguarda da atual campanha contra a violência enfrentada pelo Rio de Janeiro. Essa postura é produto do absoluto cinismo de muitas das pessoas e instituições que vemos participando de atos, fazendo declarações e defendendo o fim do poder paralelo dos chefões do tráfico de drogas.
Quando a cocaína começou a se infiltrar de fato no Rio de Janeiro, lá pelo fim da década de 70, entrou pela porta da frente. Pela classe média, pelas festinhas de embalo da Zona Sul, pelas danceterias, pelos barzinhos de Ipanema e Leblon. Invadiu e se instalou nas redações de jornais e nas emissoras de TV, sob o silêncio comprometedor de suas chefias e diretorias. Quanto mais glamuroso o ambiente, quanto mais supostamente intelectualizado o grupo, mais você podia encontrar gente cheirando carreiras e carreiras do pó branco.
Em uma espúria relação de cumplicidade, imprensa e classe artística (que tanto se orgulham de serem, ambas, formadoras de opinião) de fato contribuíram enormemente para que o consumo das drogas, em especial da cocaína, se disseminasse no seio da sociedade carioca - e brasileira, por extensão. Achavam o máximo; era, como se costumava dizer, um barato. Festa sem cocaína era festa careta. As pessoas curtiam a comodidade proporcionada pelos fornecedores: entregavam a droga em casa, sem a
necessidade de inconvenientes viagens ao decaído mundo dos morros, vizinhos aos edifícios ricos do asfalto.
Nem é preciso detalhar como essa simples relação econômica de mercado terminou. Onde há demanda, deve haver a necessária oferta. E assim, com tanta gente endinheirada disposta a cheirar ou injetar sua dose diária de cocaína, os pés-de-chinelo das favelas viraram barões das drogas. Há farta literatura mostrando como as conexões dos meliantes rastacuera, que só fumavam um baseado aqui e acolá, se tornaram senhores de um império, tomaram de assalto a mais linda cidade do país e agora cortam cabeças de quem ousa lhes cruzar o caminho e as exibem em bandejas, certos da impunidade.
Qualquer mentecapto sabe que não pode persistir um sistema jurídico em que é proibida e reprimida a produção e venda da droga, porém seu consumo é, digamos assim, tolerado. São doentes os que consomem. Não sabem o que fazem. Não têm controle sobre seus atos. Destroem famílias, arrasam lares, destroçam futuros.
Que a mídia, os artistas e os intelectuais que tanto se drogaram nas três últimas décadas venham a público assumir: "Eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro". Façam um adesivo e preguem no vidro de seus Audis, BMWs e Mercedes."
Taí, falou quem pode.


Não quero acreditar

Transcrevo a notícia publicada no Caderno D+ do Estado de Minas em 18.maio, terça-feira passada:
"Pesquisa maluca:
Poetas morrem mais cedo do que outros escritores, como novelistas e roteiristas, segundo um estudo realizado nos Estados Unidos. Segundo James Kaufman, da Universidade do Estado da Califórnia, isso deve-se ao fato de que poetas são torturados ou autodestrutivos, ou adquirem uma má-reputação ainda jovens. Kaufman estudou 1.987 escritores mortos de todo o mundo que viveram nos últimos séculos e descobriu que os poetas “morrem significativamente mais jovens”. Na média, a expectativa de vida de um poeta é de 62 anos, contra a dos roteiristas, que é de 63 anos, a de novelistas 66, e a dos escritores de obras não-ficcionais, 68 anos."

Não quero acreditar nisso: será que o pesquisador James Kaufman considerou outras variáveis: Estilo de vida, abuso de substância, fome... Afinal, ser poeta nunca foi lá um meio de vida valorizado pela sociedade. A poesia transita por caminhos alternativos ou, mesmo, marginais. Um poeta consegue efetuar rupturas no discurso dominante e estereotipado da linguagem usual e, muitas vezes, é atravessado por conflitos entre o princípio da realidade e o que irrompe de seu interior. Não são poucos os poetas que afirmam escrever por necessidade e não por prazer.
A propósito, taí um poema do Fernando Pessoa:
Autopsicobiografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.