06 abril, 2008

LOUCURA: Festival e Museu

"Quando eu era criança pequena lá em Barbacena..." tornou-se bordão em antigo programa humorístico. Muitos já começavam a rir à sua simples enunciação, provavelmente pelo forte sotaque capira, pela vestimenta inadequada e, principalmente, pela expressão abobalhada e louca do ator.

Associar Barbacena à loucura não é sem propósito, uma vez que lá se criou o primeiro hospício para loucos em Minas Gerais. Segundo Moacyr Scliar
"no começo do século passado, a cidade pleiteava se tornar a capital de Minas Gerais. Perdeu para Belo Horizonte, mas, como costuma ocorrer em nosso país, os políticos trataram de providenciar algum tipo de compensação para os barbacenenses ... Era a fase do alienismo: a psiquiatria não tinha muito a fazer pelos pacientes e, por causa disso, os internava em instituições gigantescas. Barbacena ganhou, então, o seu hospício" (Jornal Zero Hora, 19;mar/2007, p. 2).

Hospício de Barbacena, 1912. Foto-reprodução by Cláudio Costa (5.abril.2008)

Muita água passou por debaixo da ponte, desde então. Muita gente, também, passou pelos portões do grande manicômio, crescido desmesuradamente, até tornar-se um verdadeiro campo de concentração, com milhares de internados, numa rotina dantesca de dessubjetivação, humilhação, doença e morte. O Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena(CHPB) se tornou o macabro fornecedor de corpos para os estudos de anatomia, afora os quase 60.000 enterrados em seu Cemitério do Cascalho.

A coisa se institucionalizou de tal forma que até a Estrada de Ferro Central do Brasil estendeu um ramal às suas imediações e autorizou a parada dos comboios, bem ali. Havia um desvio na estação, onde o guarda-freios desconectava o último vagão, repleto de loucos embarcados desde o longínquo norte mineiro: era o trem de doido, expressão elogiosa que define, hoje, algo muito bom.
1979: As possibilidades de transformação e extinção daquele inferno principiam em 1979, a partir do Movimento Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental. Em julho, acontece em Belo Horizonte o Seminário de Psiquiatria Social, com a presença de Franco Basaglia, psiquiatra italiano, que visitou os hospitais psiquiátricos mantidos pelo Estado (Instituto Raul Soares e Hospital Galba Velloso, na capital; CHPB, em Barbacena). O jornalista Hiram Firmino escreve uma série de reportagens, intitulada "Os porões da loucura" . O cineasta Helvécio Ratton produz o documentário "Em nome da razão", retratando o interior dos porões, as precariedade da assistência, o descaso para com seres humanos desprovidos de qualquer dignidade. A sociedade se mobiliza. Os portões começam a ser abertos. Psiquiatras e outros profissionais se reúnem no II Congresso Mineiro de Psiquiatria. Bem devagar, mas inexoravelmente, as coisas começam a mudar.

2006: Em março de 2006, realiza-se o Primeiro Festival da Loucura de Barbacena, evento organizado pela Prefeitura. A princípio, só festa, como que para exorcizar os fantasmas e o estigma que traumatizava a própria menção do nome da cidade. Tom Zé, Hermeto Pascoal e Lobão fazem os shows. Há encenação de peças teatrais, exposição de artes e filmes.
Agora, em 2008, estive lá para o Festival da Loucura número 3: o evento cresceu e teve uma parte científica, com três mesas redondas: Nunca houve um homem como Heleno (aquele jogador do Botafogo, que faleceu no hospício); O Alienista (pelo centenário de Machado de Assis); Debate sobre o documentário Omissão de Socorro (de Olívio Tavares de Araújo), Van Gogh, o artista e o sujeito (sobre o homem que habitava o artista).
Neste final de semana pude ver a exposição de fotos, uma peça de teatro e visitei o Museu da Loucura.

Pois é, há 10 anos se criou, no "torreão" do antigo hospício, um museu com fotos, objetos e depoimentos sobre os porões da loucura. Métodos primitivos e desumanos para tratar os alienados não podem ser esquecidos para que nos lembremos de quão frágil era o pretenso cientificismo do início do século passado. Um alerta para nós, psiquiatras de hoje, que devemos avaliar cuidadosamente as promessas das neurociências: será que as certezas de hoje serão, um dia, objeto de museu?
Torreão do Museu da Loucura. Foto by Cláudio Costa (5.abril.2008)