26 abril, 2007

Televisionismo paroxístico agudo

Não tenho muito tempo pra ver TV.
Confesso que meu esporte é zapear, pois "O controle remoto é o maior amigo do homem".
Se alguém ainda não disse isso, acabo de criar um aforisma [s.m. máxima ou sentença que, em poucas palavras, explicita regra ou princípio de alcance moral; apotegma, ditado] pelo qual devo cobrar royaties ou, pelo menos, reconhecimento público. Digo e repito:
"O controle remoto é o maior amigo do homem".

Mas voltemos ao zapear e algumas constatações:

1. a dita "tv aberta" é uma merda: desconsidera a inteligência do espectador ou se nivela por baixo, oferecendo muita baixaria. Vez por outra escapa um bom programa.
Podem dizer:
- O que é bom para você pode não ser bom para o outro, e vice-versa, e tal-e-coisa.
- Tá bom, de gustibus non disputantur.

2. as propagandas estão ruins demais!
  • De maneira geral, tem-se que diminuir o volume nos intervalos, pois o pessoal da criação (criação?) acha que todo televidente é surdo.
  • As lojas populares GRITAM as ofertas, tudo a qualquer valor que termine em 0,99: Máquina de lavar: 799,99! Sapato: 49,99! Carne: 11,99! Computador: 24 x 109,99!
  • Os automóveis são máquinas maravilhosas, fazem 300km/h nas moderníssimas highways tupiniquins! Outro dia vi o anúncio da VW de seu carro popular, o Gol: o danado do carrinho é bombardeado, enfrenta terremotos e maremotos, desmoronamentos e o escambau [o Houaiss explica: s.m. série de outras coisas não mencionadas] e continua lindo, inamassável, limpinho da silva! [Eu, que não sou nada bobo, corri e comprei um, hehehehe].
  • O Brasil é o país das louras, lindas e maravilhosas, todas muito bem vestidas ou despidas, todo mundo muito feliz. As casas têm mobiliário clean, ultra-contemporâneo com um toque de conforto, iluminação high-tech e todos os apetrechos que a tecnologia pode proporcionar.
  • Dinheiro? Não é problema, afinal, A Caixa é Nossa, O Banco do Brasil é Nosso, Você tem 120 razões para ser cliente do Bradesco e os juros estão deste tamaninho aqui, ó! O que é que um cartão de crédito não pode pagar?
  • Os telefones celulares (que os nossos irmãos portugueses chamam de telemóvel) existem para todos os gostos e têm modelos novos lançados todos os dias, várias vezes ao dia, igual remédio: tome um comprimido pela manhã, à tarde e à noite. Pois as máquinas da Nokia, LG, Samsung e outras (será que alguém aí vai me pagar pelo merchandising?) só faltam falar, mas têm câmeras digitais, computadores, baixam e-mails e enviam torpedos. Já há modelos com salva-vidas, panela de pressão e air-bag, dizem.
  • O que existe de programa esportivo não tá no gibi, mas tá na tv: o brasileiro é o povo mais instruído do mundo, se for avaliado pela quantidade de mesas-redondas nos finais de domingo, de quarta-feira, de quinta-feira... Também na hora do almoço: antes, durante e depois os comentaristas, locutores, jogadores, juízes, torcedores, tá tudo ali, esmiuçando cada jogada!
  • os comentaristas econômicos são os verdadeiros cavaleiros do apocalipse. Adoram dar notícia ruim: "O desemprego subiu 0,001% nas primeiras horas da manhã!" Quando a notícia é boa, advertem que não é para ficarmos eufóricos, pois tudo pode mudar, a inflação voltar, o Banco Central diminuir a queda da taxa básica dos juros e, o mais incompreensível de tudo: "O Brasil teve um crescimento negativo". Como? -Igual buraco, rapaz: Quanto mais cresce, mais vai para o fundo! - Anh...
- Quae cum ita sint, diriam os romanos, quer dizer que você anda vendo tv demais, né?
- Pois sou obrigado a falar a verdade: tudo isso vislumbrei em algumas zapeadas básicas, rapidíssimas, entre uma garfada e outra, entre um cochilo e outro, entre uma e outra, que ninguém é de ferro!

21 abril, 2007

Daqui para uma melhor: uma viagem sem escalas

Sou do tempo em que crianças frequentavam aulas de Catecismo (at. catechismus,i 'instrução religiosa', do gr. katékhismós, do v. gr. katékhéó,ô 'fazer reter nos ouvidos, donde instruir de viva voz') Não, não era o do Carlos Zéfiro, era mesmo o Catecismo Romano, conjunto de normas e artigos de fé cristã/católica-romana, síntese das conclusões do Concílio de Trento (século XVI).

As aulas eram ministradas por uma velha senhora, muito rígida, que ensinava religião como quem lidava com hereges, pecadores contumazes e irremediavelmente condenados ao fogo eterno! Teríamos chance de escapar da condenação se praticássemos escrupulosamente os dez mandamentos, as quatro virtudes cardeais (prudência, justiça, fotaleza e temperança). Era mister obedecer aos cinco mandamentos da igreja (ouvir missa inteira aos domingos, confessar-se uma vez ao ano, comungar pelo menos uma vez anualmente, jejuar e fazer penitência, pagar os dízimos). Ah, e que não caíssemos nas tentações dos sete pecados capitais (ira, gula, inveja, orgulho, avareza, preguiça e luxúria)!

Ainda menino, vislumbrei um caminho difícil para ir direto ao céu. Tinha de ser uma viagem sem escalas, porque, mesmo evitando os pecados capitais, poderia morrer em pecado venial (etim lat.tar. veniális,e 'de perdão, leve, perdoável, desculpável'), o que me levaria ao purgatório (etim lat. purgatorìus,a,um 'que purga, purgativo, que purifica', já em Macróbio (fim do sIV d.C.) 'que purifica (a alma)'; como subst. ligado ao cristianismo (em gr. kathartêrion ou purgatóiron [tomado ao lat.]), o lat. purgatorìum se usa como 'lugar ou estado especial de pena e expiação de almas depois da morte'), menos terrível - posto que provisório!

Uma doutrina, porém, deixava-me intrigado: a existência do limbo (s.m. (1562-1575 cf. PaivSerm) 1 na religião cristã, morada das almas que, não tendo cometido pecado mortal, estão afastadas da presença de Deus, por não haverem sido remidas do pecado original pelo batismo (como, p.ex., as almas ditas justas que viveram antes do advento do cristianismo).

Se alguém morresse sem o batismo, mesmo que fosse virtuoso, não poderia ir para o céu, mas ficaria no "limbo" até o final dos tempos, quando se abririam as porteiras do céu. Seria necessário esperar muito, muito mesmo. Eu me regozijava por saber-me portador do passaporte, pois nascera em família católica. Entretanto, preocupavam-me os milhões de não-cristãos nascidos antes da instituição do batismo e em países onde não havia sido introduzida a fé cristã. Por que Deus faria uma coisa dessas?

Finalmente, vejo o noticiário:
Os teólogos do Vaticano estão convencidos, após vários meses de reflexão, que o limbo não existe e que as criancinhas mortas sem o sacramento do batismo vão diretamente para o paraíso.

Um documento da comissão teológica pontifical teve alguns extratos publicados no site da agência Catholic News Service (CNS) mas ainda não foi divulgado pelo Vaticano, apesar de pronto há várias semanas - precisou à AFP um integrante da comissão, o arcebispo de Dijon (França) Roland Minnerath.

Finalmente! Acabaram-se meus receios pelos bebês ficarem sofrendo no limbo até o fim dos tempos!
Agora, só me falta praticar os 10 mandamentos, as 4 virtudes cardeais e... ficar apenas nos pecadinhos veniais!

Quando vier o final dos tempos, quero ver cada um de vocês que me lêem. E nada de caírem de gozação em cima de mim - "-tão virtuoso, o Cláudio, coitado! - dizendo que pecaram, pecaram e se arrependeram na última hora e chegaram, igualmente, no bem-bom do paraíso!

Não! Não tenho pressa nenhuma de atravessar os portais da existência, muito menos desejo-lhes que partam em breve.
Por isso mesmo, conclamo a todos para se engajarem na campanha FAÇA SUA PARTE, assim como Lúcia Malla, Flávio Prada e muitos outros...

16 abril, 2007

Oficina sonora

Nosso filho Angelo & sua Renatinha convidaram-nos, a mim e à Amélia, para assistirmos ao show de lançamento do DVD do grupo Uakti [este link é espetacular: você pode escutar amostras do som do Uakti, conhecer sua história e descrição de cada instrumento].

Em 1981, antes mesmo que o Ângelo tivesse nascido, comprei o primeiro disco
"Oficina Instrumental" (olhaí a foto da capa): um long-play de vinil, que guardo até hoje. Impressionou-me o som "doido demais", extraído de tubos de pvc, alguns com água em vários níveis, instrumentos inventados e fabricados pelo fundador/inspirador Marco Antônio Guimarães.

Pois sexta-feira estivemos lá no Palácio das Artes e, mais uma vez, aquele mesmo som que nos surpreende sem agredir, que nos encanta pelo inusitado, que nos enleva pela arte.

No comentário publicado hoje no EM, Eduardo Girão diz:
Quem assistir ao DVD encontrará repertório igual ao apresentado, composto por músicas de discos como Trilobyte, Clássicos, 21, Oiapok Xui e Mapa. Algumas pequenas variações serão percebidas – uma nota aqui, outra ali –, mas nada que desmereça a atuação ao vivo. No palco, decorado com o mesmo cenário, o Uakti encontrou brechas para improvisos em meio à lógica minimalista que tanto se faz presente no trabalho instrumental do grupo. Certos desvios são sempre bem-vindos.

Vai aqui minha recomendação: o DVD é nota mil. Vale o cinquentinha que estão pedindo por ele.

14 abril, 2007

Freud: a última entrevista


Eis uma das preciosidades encontradas na biblioteca da Sociedade Sigmund Freud: a entrevista concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926.
Deve ter sido publicada na imprensa americana da época. Acreditava-se que estivesse perdida, quando o Boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada, em 1976.
Na verdade, o texto integral havia sido publicado no volume Psychoanalysis and the Future, número especial do "Journal of Psychology", de Nova Iorque, em 1957.
O link para a entrevista completa, em tradução de Paulo César Souza, vai no final.

Reproduzo, aqui, alguns trechos.

S. Freud: Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade.

(Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos. Eu havia visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou. Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa de constante irritação).

S. Freud: Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.

...

George Sylvester Viereck: Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?

S. Freud: Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístas por trás de conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar à vida; movendo-se num círculo, seria ainda a mesma. Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro. Pelo que me toca, estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.

...

George Sylvester Viereck: O senhor já analisou a si mesmo?

S. Freud: Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.

...

George Sylvester Viereck: Ás vezes imagino se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o criminoso e o animal.


S. Freud: Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.

George Sylvester Viereck: Por quê?

S. Freud: Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão (acrescentou Freud pensativamente) lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de heróis antigos como Aquiles e Heitor.

...

George Sylvester Viereck: A psicanálise torna a vida um quebra-cabeças complicado.

S. Freud: De maneira alguma. A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou, modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.

...

George Sylvester Viereck: O senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?

S. Freud: Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: "Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo" ("Yet all were lacking, if sex were lacking"). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que está "além" do prazer - a morte, a negociação da vida. Este desejo explica por que alguns homens amam a dor - como um passo para o aniquilamento! Explica por que os poetas agradecem a

Whatever gods there be, That no life lives forever And even the weariest river Winds somewhere safe to sea. ("Quaisquer deuses que existam/ Que a vida nenhuma viva para sempre/ Que os mortos jamais se levantem**/ E também o rio mais cansado/ Deságüe tranqüilo no mar".)

...

(Acompanhado da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste, ao dar o seu adeus).

S. Freud: Não me faça parecer um pessimista (disse ele após o aperto de mão). Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz - ao menos não mais infeliz que os outros.

(O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância).

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A entrevista completa está no link da SPRJ.

12 abril, 2007

Caldeirão explosivo

Las emociones Basicas del Hombre é uma coletânea de artigos autoria de Joan Rivière e Melanie Klein, psicanalistas inglesas. À parte a trajetória vital interessantíssima dessas duas intelectuais, debruço-me sobre o rol de “emoções básicas do ser humano”, alinhavado em obra que começou a ser escrita em 1937!

Impressiona-me a 'atualidade' dos conceitos acerca do vulcão interior que nos habita, um misto de pulsão de vida e pulsão de morte.

A mídia nos sufoca, a cada manhã, com o relato dos assassinatos da véspera, um rosário de atrocidades contra crianças e adolescentes, bestiário de violência cometidas por seres humanos contra seres humanos.

A 'banalização da violência' já virou lugar-comum no discurso sobre a vida contemporânea e somos levados a acreditar que o mundo é ordenado maniqueísticamente entre bons e maus. Pior: “os maus são sempre os outros”.

Os subtítulos de “As emoções básicas do ser humano” já incomodam pela ferida narcísica que nos impõem: “Amor, Ódio e Reparação” e “Inveja e Gratidão”.

Joan Rivière assim introduz suas reflexões:

“Examinamos, neste livro, alguns aspectos da vida emocional do homem e da mulher que vivem em comunidades civilizadas, cujas manifestações cotidianas nos são familiares. Duas fontes fundamentais dessas manifestações afetivas conhecidas são os dois grandes instintos primários: fome e amor, ou seja, o instinto de autoconservação e a pulsão sexual. Nossas vidas estão essencialmente orientadas para duplo fim:

  • conseguir os meios que nos garantam a existência
  • extrair prazer do viver.

Esses objetivos nos provocam emoções profundas e levam a intensa felicidade ou enorme sofrimento.”

Tudo emana de duas emoções básicas:

  • Amor: força que harmoniza e unifica, dirigida para a vida e o prazer.
  • Ódio: força desintegradora e destrutiva, que tende à privação e à morte.

Não se pode dissociar amor e ódio como duas forças que se excluem, ao contrário: Ambos alimentam a agressão:

  • Muitas vezes ligada ao ódio, a agressão não é totalmente destrutiva ou dolorosa, seja em seus fins, seja em seu funcionamento.
  • Por outro lado, mesmo que brotando das forças vitais, o amor pode ser agressivo e até destrutivo.

Já que os impulsos de amor e ódio estão em todos nós, cada pessoa, em sua singularidade, dependendo de fatores diversos como temperamento, educação e experiências de vida, tenta organizar as forças brutas que a habitam, mediante adaptações infinitas, sutis e variadas.

Muitos justificam seus atos agressivos como “defensivos” frente às ameaças reais ou imaginárias que enxerga no outro.

Entretanto, um olhar mais atento e honesto para dentro revelará em nós mesmos um misto de egoísmo, baixeza, voracidade, ciúmes e hostilidade. É provável que grande parte dos dissabores cotidianos provenha desses sentimentos, não?

Quem não experimenta prazer em “vencer ou outro”, ganhar um jogo ou derrotar o suposto inimigo? Por que será que encontramos enorme fascínio nas histórias horripilantes, em filmes ultra-violentos, em cenas de desgraças, acidentes, guerras, etc.? A programação de TV está recheada de cenas assim e os noticiários têm nos escândalos e crimes o mais eficaz apelo... “Dá ibope.”

Utilizamos a projeção com um mecanismo de defesa contra nossos próprios 'instintos agressivos' e os 'jogamos para o outro'. Eles, os outros, são a causa de todos os sentimentos penosos e desagradáveis pelos quais passamos. “-A culpa é do outro”, eis o mote eternamente repetido. Assim, vemos justificadas as nossas próprias atitudes agressivas, nossa irritação, nosso ódio. Isso é muito evidente quando somos repreendidos por alguém: “Ah! Mas você também erra, você também foi cruel comigo”.

A desvalorização e o desprezo ao outro são, igualmente, mecanismos de defesa muito utilizados quando nos sentimos rejeitados. Funcionamos como aquela raposa da fábula: Ao desistir das uvas que tanto buscou alcançar, a raposa justifica: “Estavam verdes”.

Somos, mesmo, um caldeirão explosivo...

10 abril, 2007

É isso aí, bicho!

Ora somos ratos, ora gatos; muitas vezes lobo, outras camundongos,
às vezes cachorros. Alguns sonham em ser gatos ou gatas.
Há os que vampirizam os amigos: os espertos como raposas e sutis como serpentes.
E os vivazes como os coelhos ou lerdos como as tartarugas
e os que têm olhos de lince?
Quantos posam de altivos leões, quando, na verdade, desfilam desajeitados paquidermes?
Às vezes somos surpreendentes como lêmures, ora pois.

Somos todos bicho-fera?
Tem gente que cultiva grilos na consciência e
riem como hienas ou choram lágrimas de crocodilo, os fingidos.
Traídos, maridos se tornam touros e chamam as esposas de "sua vaca"!
Já as crianças fazem macaquices e brincam de cabras, cabras-cegas - como é bom!
...há os que borboleteiam no carnaval ou se pavoneiam orgulhosos fantasiados de drag-queens.
Alguns falam feito papagaio, fuxicam tal maritaca e envenenam como jararaca ou cascavel.
O craque é cobra no futebol; o perna-de-pau é uma anta, pois não?
Se uns cantam de galo, outros fogem feito galinha, pois sim!
Garanhões procuram potrancas enquanto porcos chafurdam na lama,
os argutos, porém, alçam vôos de águia e roçam as asas nas nuvens.
Não me esqueço dos que, agourentos, espiam como corujas, farejam como cães-de-caça e dão o bote nos patos. Cuide-se pra não comer mosca e virar sapo, não há mais princesas disponíveis.
Até o Kafka virou barata, logo ele que não era nada burro!


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Livres associações a partir deste post da Yvonne.

09 abril, 2007

Quem ainda escreve cartas?

D. Afonso,que se diz Chato sem sê-lo, fez um post sobre cartas. Despertou-me o desejo de comentar em forma de epístola. Fi-lo. D. Afonso respondeu publicamente, tá lá no post de ontem, e a Luma me provoca a republicar um post antigo, de 2005.

Ei-lo, com os antigos comentários:


Quem ainda escreve cartas?


Sou do tempo em que se escreviam cartas!

Aprendi a escrevê-las no "curso primário" (hoje, 1a. a 4a. série do Ensino Fundamental). As regras eram mais ou menos essas:

  • sempre fazer um rascunho, verificando a correta ortografia, depois passar a limpo;
  • fazer o cabeçalho:
    • com o nome da cidade, seguido de vírgula;
    • a data em numeral, o mês iniciando com maiúsculas, o ano em numeral. Assim: Belo Horizonte, 11 de Setembro de 2005;
    • saltar um espaço equivalente a uma ou duas linhas e escrever o destinatário, com delicadeza e cortesia: Minha querida mãe, Aparecida;
    • fazer uma breve saudação, preferencialmente religiosa: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
  • saltar mais um espaço e iniciar o texto, perguntando pela saúde do destinatário e dos familiares. Se a caligrafia não for muito boa, desculpar-se: Em primeiro lugar, peço-lhe desculpas pela letra. Como vai a senhora? E o papai, tudo bem? Espero que todos daí estejam gozando de boa saúde.
  • dar breves notícias sobre si mesmo: Por aqui, graças a Deus, tudo corre muito bem, apesar de eu ter estado ligeiramente gripado, na semana passada. No trabalho, como sempre, muito apertado. Os meninos e a Ana Letícia vão bem, com muita saúde, mas com muitas saudades da senhora e de todos. Perguntam quando nos veremos e eu explico que viajaremos nas férias de final de ano, se as finanças ajudarem.
  • finalmente, o objetivo específico da carta: Escrevo-lhe esta missiva (nome chique para carta) para lhe desejar os parabéns pelo seu aniversário, transcorrido no dia 9 pp (próximo passado). Lembrei-me da senhora com carinho e muita emoção. Infelizmente não pude abraçá-la pessoalmente, mas tenho certeza de que nossos corações estão muito perto, pois lembro-me da senhora todos os dias. Juntos, minha esposa Amélia, os meninos e eu recordamos os dias em que a senhora e o papai estiveram aqui em casa, enquanto ele se recuperava da cirurgia a que foi submetido. A gente riu muito das "pegadinhas do vovô Ismael". Foram dias maravilhosos, não foram? Venham mais à nossa casa, pois é sempre muito bom recebê-los. Meus irmãos e minha irmã foram visitá-la? Abrace-os, por mim.
  • se não houver mais nada a comunicar, então deve-se fazer as despedidas: Bem, vou ficando por aqui. Deixo meu abraço e o abraço de todos daqui de casa. Não se esqueça de transmitir nosso afeto ao papai e a todos daí. A sua bênção para o filho que a ama, Cláudio.
  • deve-se dobrar a folha com cuidado e colocá-la no envelope. O endereço seja escrito com clareza, de acordo com as instruções da DCT (Departamento de Correios e Telégrafos). É muito importante colocar o remetente, no verso do envelope, com endereço certinho. Na agência, comprar os selos e selar bem, sem lambuzar de cola.
Eu adorava escrever cartas e, principalmente, de recebê-las. Às vezes, esperava mesmo o carteiro ou corria na agência local perguntando: "-Chegou carta pra mim, hoje?" No tempo em que estudei no Colégio do Caraça, o padre disciplinário entregava a correspondência logo após o almoço, diariamente. Era um ritual: um bando de alunos, aglomerados em torno do padre, gritando: "-Tem pra mim? Tem pra mim?" Quando se era brindado com um envelope, as mãozinhas buscavam céleres o conteúdo e os olhos vivazes devoravam cada palavra. Lia e relia várias vezes, buscando descobrir, em cada expressão, algo mais além do seu significado imediato. Nem nos importávamos com a censura prévia: com efeito, toda correspondência era lida pelos superiores, antes de chegarem às nossas mãos. Explicavam assim: "-Pode ter alguma coisa inconveniente, ou notícia ruim." Eu sempre me perguntava: "-O que é coisa inconveniente?".

As cartas deveriam ser escritas a mão, com caneta tinteiro. Somente o rascunho era feito a lápis, para não gastar tinta.


Eu tinha uma caneta Parker 51, dada pelo meu pai. Era o sonho de consumo: desenho "aerodinâmico", como se dizia. A propaganda circulava nas Seleções do Reader's Digest - meu avô Ilidinho assinava - e em outras revistas e jornais. Por onde anda minha Parker 51?

Escrever cartas era um processo meditado e, portanto, demorado. Tinha-se que refletir sobre o tema da carta, pensar bastante e escolher as palavras com cuidado para não provocar mal-entendidos. Preferia-se a linguagem mais formal, com uma brincadeirinha ou outra. Qualquer gíria deveria ser colocada entre aspas, "sacou"?
Muitas vezes as cartas adormeciam dentro de um livro ou no fundo de uma gaveta, à espera de que as idéias amadurecessem e não se corresse o risco de, na precipitação, cometer alguma impropriedade. Um ritual, com certeza.

De vez em quando sou atraído pelo lançamento de livros que contêm as cartas trocadas entre pessoas famosas, escritores, filósofos e, até, amantes. Quanta história, quanta sensibilidade, quantas idéias construídas gradualmente no vai-e-vem de envelopes, às vezes atravessando oceanos, demorando meses para chegar ao destinatário...

Já li a Correspondência entre Freud e Jung, entre Freud e seu amigo Fliess, entre Fernando Sabino e Clarice Lispector. Talvez tenha lido outras, mas não me lembro...


Quem ainda escreve cartas?

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Post scriptum: Há uma belíssima carta do D. Afonso no seu blog. Leiam-na.

05 abril, 2007

E o Soié a nadar...

Foto do Soié, by Clóvis Costa

Meu irmão, o Clóvis, convidou nossos pais - Ismael (Soié) e Aparecida) para uma viagem de férias. Em Janeiro, estiveram no Espírito Santo, onde visitaram outros manos. Mas, também, cometeram algumas.
Vejam a travessura de meu pai, Soié. (É só clicar no link e cairão no Ontem-Hoje, seu blog).