17 março, 2006

R e v e l a ç ã o

Seu paletó era pelo menos 2 números abaixo, as calças puídas e os pés descalços, mas nada disso apagava a altivez do porte, o rosto sereno e o olhar quase translúcido, talvez manso, com certeza fixado no infinito.

A cabeleira e o rosto hirsuto evocavam a figura de um dos profetas esculpidos por Aleijadinho, perenes em sua pétrea consistência no adro da Basílica Senhor Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas.

Puxei conversa, falei do tempo, quis saber o que o trouxera ali. Olhou-me como teria olhado Cristo para seus algozes, lá do alto da cruz ("Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem") e, apenas, sorriu.

Eu já sabia todas as respostas àquelas perguntas de praxe, pois lera seu prontuário antes de entrevistá-lo. Com certeza ele sabia disso e o demonstrara com um sorriso que destilava zombaria misturada a compaixão e uma pitada de sentimento de superioridade.

Não o enfrentei. Demonstrei sincero interesse em conhecer-lhe a história. Afinal, a relação médico-paciente pode ser ocasião de aprendizagem mútua. Com humor e, às vezes, com total razão, diz-se que a diferença entre um e outro pode ser denotada por quem possui a chave da porta de saída.

Ele percebeu minha "boa disposição":
- Se o senhor quer mesmo saber, tenho uma revelação a fazer.
- Como, assim, uma revelação?
- Minhas últimas descobertas que, ainda, mantenho em segredo.
- Que descobertas?
- Pesquisas científicas iluminadas pela Divina Providência.
- Além de tudo, o senhor é cientista?
- Isso e muito mais. Tenho a Luz!
- Anh...

Enquanto dialogávamos, apalpou o surrado paletó e, de um dos bolsos internos, retirou um papel cuidadosamente dobrado. Olhou para um lado e para outro, a certificar-se de que ninguém o observava e o entregou a mim:

- O senhor é médico, mas sua ciência é apenas humana. Eu não estudei na faculdade mas meu mestre é Aquele lá de cima. Tenho contato direto com Ele. Fui escolhido para transmitir à humanidade toda a onisciência do universo.

Principiei a desdobrar a folha manuscrita. Interropeu-me:
- Não, doutor. Aqui não. O senhor vá para casa, leia com atenção e, caso não entenda alguma coisa, amanhã posso explicar.

Levantou-se com a segurança de que era ele quem comandava a entrevista.
Tranquei o consultório e comecei a ler:

Revelação

Inicialmente, tomemos o universo para definir o Ser Humano. A palavra "universo", que remonta aos primódios do Homem, significa os milhões de compostos (cometas, satélites, planetas, planetóides) que temos dentro de nós. Somando ao todo, desde a célula até o átomo, são 82 espécies de pequenas partículas desde a célula, que é a flor, por assim dizer, desses elementos.

O Ser Humano, quando sai no esperma, já é portador desses 82 elementos. Entretanto, deve-se observar que, além do átomo, há ainda 14 mil classificações de sub-matéria.

Mas isso pode estar em desequilíbrio se o filho, que está dentro do organismo da mãe, mover-se em sentido contrário no seu corpo, descentrando as forças e desorganizando o universo interior. Poderá acontecer uma lesão que, fatalmente, se estenderá a outra parte das células, provocando o câncer. Explico: enquanto o corpo do feto, obedecendo a ordens foto-elétricas do cérebro faz tin-don, o universo canceroso está a fazer tin-tin.

O câncer nada mais é do que um universo estranho entranhado no todo universal, ou kaeeme, que é o corpo humano em sua plenitude.

Há um tipo de câncer, por exemplo, que adquirimos ao mantermos relações com uma prostituta. Cito um artigo do Reader's Digest no qual um professor universitário disse para um atleta de 105 kg que, se seus átomos fossem comprimidos, o seu corpo - ou núcleo - pesaria e teria o volume de um grão de pó, mesmo assim contendo todo o universo. Conclui-se, então, que uma gota de blenorragia adquirida de uma prostituta pode conter vários universos.

Todas essas explanações foram conjuradas ao meu Luminoso, após ter sido eu encarregado de isolar o Ser Humano de doenças ancestrais. A doença atinge a humanidade há 2 bilhões de anos retró.

Mas não vou estender mais considerações, apenas indicar o principal, ou seja, a solução:

(XH x 4) . (Y x H/2) = 4% de decímetros de potássio sólido + 4% de decímetros de carboneto sólido + 9% de carbono líquido + 10 centilitros de sangue de morcego.

Por que sangue de morcego?
Porque o sangue de morcego não move suas moléculas como o do Ser Humano. Ele é classificado pela Ciência da Nave como "o lídimo", o "legítimo". Por isso se aproveita de outros animais, sugando-lhes o sangue para que sobreviva e seja sustentado em seu componente hétero-esotérico, no interior de seu carma.

Se a humanidade quiser saber mais, que leia meu livro: "Os deuses não tocaram"
Assinado: J.B.O.