30 junho, 2006

Tudo é futebol. Futebol é produto. Tudo é produto.

É claro que vibro a cada vitória da Seleção Brasileira na Copa 2006. Não tenho dúvidas de que o futebol é um esporte popular, mobiliza corações e mentes, faz circular milhões e milhões de dólares, etc.
Mas acho que há uma supervalorização pela mídia: a cobertura da Globo apela para emoções baratas, entope o telespectador com estatísticas absurdas e desencadeia uma onda de patriotada extemporânea. O povo, lógico, cai na esparrela...
Achei o artigo abaixo, do jornalista Thomaz Wood Jr. , que copiei do site CartaCapital.

VOYEURS EM FÚRIA

A cada quatro anos, turbas de conformistas, de variadas latitudes e
idênticas atitudes, unem-se em uma orgia comunal, a celebrar a superioridade da euforia sobre a alegria.

Hoje, uma boa medida de popularidade é o número de citações obtidas no
Google. Tome-se, por exemplo, o termo "football" e retornarão nada menos do que 564 milhões de citações, superando "God" (545 milhões) e "Christ" (apenas 131 milhões). Significativo! Insira-se o nome das celebridades relacionadas ao citado esporte e resultarão cifras igualmente astronômicas.

O inglês Beckham conta com mais de 31 milhões de citações e o brasileiro
Ronaldo chega a quase 24 milhões. Outro inglês, Harry Potter, com 162
milhões de citações, supera-os com folga. Entretanto, é bruxo e pratica
outro esporte. Do outro lado da fama, este pobre escriba não chega a
insignificantes 60 mil citações, o que leva a deduzir que duas chuteiras
valem aproximadamente 500 penas.

Trata-se, sem dúvida, de um fenômeno. O New York Times, há quatro anos, dedicava apenas espaços secundários ao mais globalizado dos esportes.

Hoje,
o diário mais lido da internet faz chamadas na primeira página, traz longas matérias e mantém um blog exclusivo. Da pátria mãe do esporte, o semanário The Economist advoga que a Copa do Mundo é o principal evento esportivo do planeta, superando as Olimpíadas. Rationale: a Copa é mais igualitária, mais surpreendente e menos propensa a manipulações por governos e ditadores.
Será?

Aos excêntricos, que teimam em ignorar o fenômeno, restam o isolamento e a perplexidade. É o caso deste escriba, que na vida assistiu a uma única
peleja. Foi no ano de 1998, na terra de Asterix, em uma abertura festiva de Copa do Mundo. No pasto plano à frente perfilaram-se 22 atletas, dos quais 11 representavam Pindorama e 11 outros defendiam a pátria dos saiotes.
Aberta a partida, a curiosidade de marciano não durou mais do que 12
minutos. Então, a vista se perdeu, a atenção se esvaiu. Teria sido diferente com uma partida de críquete ou um torneio de bocha? Provavelmente, não.

Exercitar esqueleto e músculos é uma maneira muito prazerosa e saudável de manter o espírito alerta, a coluna reta, a mente aberta e o coração
tranqüilo. Espiar trotes cansados, alternados com desabaladas correrias e
pontapés, é meramente enfadonho. Não menos bizarro é testemunhar os
malabarismos romanescos de talentosas penas, a acrescentar genialidade e poesia a movimentos incertos e desarmônicos. Nas linhas desses magos, encontros aborrecidos transmutam-se em lutas épicas, momentos insossos ganham matizes políticos e ascensões fortuitas ressurgem como tratados
sociológicos. Tudo isso ficaria recolhido aos subterrâneos da civilização,
não fosse a incontrolável histeria da mídia, a fazer eco em parcela
considerável da população. Então, por motivos que escapam ao senso comum, embates de pouco brilho transformam voyeurs em selvagens, a brandir buzinas e explodir rojões madrugada afora.

Na entrada do terceiro milênio, o esporte em questão soma religião, mercado e espetáculo. É religião porque é marcado por uma fé de fanático, que turva a razão e a sensibilidade. É mercado porque é dominado pelo comércio das pernas, da imagem e dos sonhos. É espetáculo porque foi transformado em show mundial, com mídias especializadas e celebridades próprias, tudo acompanhado em tempo real por turbas globais, conformistas e esbaforidas.

A perseverar as tendências atuais de hiperespecialização e hipercomercialização, o futuro será ainda mais frenético e eufórico. Aos
atletas, assessorias e entourage, serão acrescidos torcedores profissionais.
Eles serão recrutados em todo o mundo, ganharão maquiagem e fantasia, e preencherão ordenadamente as arenas esportivas. De Liverpool e de São Paulo serão trazidos exemplares mais violentos, destinados a erupções controladas de selvageria.

Do Rio de Janeiro virão os tagarelas profissionais, mestres

da incontinência verbal. De Estocolmo e de Buenos Aires virão exuberantes loiras, postas a adornar pontos estratégicos das arquibancadas. Da África e da China virão os atletas, em grande quantidade e com baixo custo. Da
Califórnia e da Índia virão os gurus para garantir a harmonia e a
auto-estima das equipes. Fotógrafos e cinegrafistas, dirigidos por magos da publicidade, ensaiarão e produzirão momentos de espontaneidade e vivacidade.

Escritores de grande talento e baixa renda serão recrutados para elaborar

épicos e fábulas. Fabricantes de cerveja e de tênis comandarão todo o
espetáculo, explorando cada oportunidade de merchandising. Pelas tevês,
internet e fones móveis, as hordas continuarão a acompanhar o show, uivando e disparando rojões em momentos precisos. Ao menos não estarão pelas ruas roubando, dirão as avós.