22 janeiro, 2006

FARMÁCIA OU DRUGSTORE?

O filósofo grego, Platão, em seu diálogo chamado Fedro, descreve a analogia socrática entre a ciência médica e a retórica: ambas se ocupam da natureza: a do corpo e a da alma.
Sócrates afirmava que, enquanto a ciência médica administraria ao corpo medicamentos e alimentos - promovendo desta forma a saúde e a força - a dialética, visando a alma, proporcionaria idéias e ocupações justas que conduzem à convicção e à virtude.


O conhecimento médico entre os gregos da época era pautado pela noção hipocrática de phísis: aquilo que é o que é por natureza, independente da decisão ou vontade racionais dos seres humanos.

Eis o fragmento do texto de Platão:

Sócrates - A ciência médica tem, de certo modo, o mesmo caráter da retórica.
Fedro - Como assim?
Sócrates - Em ambas é preciso analisar uma natureza: a do corpo em uma, a da alma na outra, se se quer recorrer não somente a uma rotina e a uma prática, mas a uma técnica, para ministrar ao corpo remédios e alimentos e produzir assim, nele, a saúde e a força; e para a alma, idéias e ocupações justas para lhe transmitir a convicção e a virtude que são desejáveis.

De acordo com a concepção de Hipócrates, retomada por Platão, a saúde estaria no equilíbrio entre as virtudes éticas da alma e as "virtudes" do corpo: uma, espelho da outra. A simetria das partes e das forças naturais configuraria a saúde. Daí o aforismo: mens sana in corpore sano (mente sã em corpo saudável).



Se o uso de medicamentos – embora primitivos, empíricos – já era prática, é preciso distinguir as várias concepções do phármacon, de acordo com Jorge Saurí (Temor de la Terapéutica, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, V. I, no. 1, São Paulo, 1998):
  1. Droga - pode ser remédio e/ou veneno, dependendo da singularidade de cada pessoa, da indicação, da quantidade e da época da doença.
  2. Tintura - pode fazer algo parecer outra coisa. São as drogas que tratam apenas o sintoma, sem atingir as causas. Por exemplo: antitérmico que pode baixar a febre, mas que não combate a infecção que está desencadeando essa febre.
  3. Escritura - favorece a recordação e incita o esquecimento: pela confiança no que já está escrito. O apego à tradição promove a inflexibilidade na aplicação dos medicamentos e a utilização de ritos mágicos ou supersticiosos. As proibições de combinar certos alimentos (manga com leite, por exemplo) se enquadram neste tópico.
  4. Objeto Numinoso - remete ao mágico, numa função expiatória. A Medicina hipocrática situa, aqui, a expectativa mágica de cura que fica investida, pelo doente, na figura do doutor que dele cuida. Há uma “sacralização” da figura do profissional, conforme descreve Hipócrates: As coisas que são sagradas devem ser reveladas aos homens sagrados; aos profanos, elas não são permitidas enquanto eles não sejam iniciados nos mistérios da ciência.
Todas essas atribuições dos fármacos e da função médica devem ser levadas em conta e orientam uma boa prática.

Infelizmente, com as promessas da indústria farmacêutica, os pacientes já chegam ao médico demandando um tipo específico de medicação, uma solução mágica para seus problemas.

Isso é muito mais evidente em meu consultório, ao qual algumas pessoas acorrem na expectativa única de que posso fornecer a
felicidade plena ministrando um comprimido de Prozac ou de Lexotan! Não querem falar de si, não querem voltar-se para a própria história, têm medo de perscrutar seu inconsciente. Muitos recusam uma psicoterapia, dizendo:
- E se eu descobrir que não faço nada do que quero e vivo sem paixão?
Ao que respondo:
- E alguém lhe diz o contrário?

Preferem a tintura: algo que mascare seu sofrimento, sem que se busquem as causas, assentadas que estão em sua história e em seus conflitos.

À utopia de se ter felicidade plena, corpo perfeito, integração social sem conflitos atendem os médicos que se julgam deuses (operam apenas como objeto numinoso) e as atuais farmácias, já explicitamente chamadas de drugstores, onde tudo se vende: remédios, doces, alimentos dietéticos, presentes, picolés, sorvetes, refrigerantes, shampoos, comida pra cachorro, telefone celular, carvão para churrasco, jornais, etc.
É o que se chama loja de conveniência.
Conveniência do mercado dos ideais hedonistas da cultura, cujo marketing se baseia em promessas vãs (exatamente aquelas em que todos querem acreditar!).


Já o doente...

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Atualização:Resposta ao comentário da Erika:

O tratamento dos transtornos psiquiátricos evoluiu muito e podemos creditar ao uso de psicofármacos grande parte deste avanço.
Nos idos de 1950, descobriram-se as fenotiazinas (amplictil, neozine, melleril, etc) e as butirofenas (haldol, triperidol, etc); também os ansiolíticos (diazepan e assemelhados). Isso possibilitou incomensurável alívio aos portadores de doenças mentais e que evitou o absurdo número de internações psiquiátricas (quem nunca ouviu falar dos terríveis "hospícios", destino inexorável dos "loucos de toda espécie"?) iniciando-se o processo de desospitalização.

Com o advento dos antidepressivos (anafranil, tryptanol, tofranil - os tricíclicos) na década de 60 e dos mais modernos (fluoxetina, citalopram, sertralina, etc), muitos dos que padeciam de depressões se viram livres do sofrimento sem fim.
Por isso, não se pode descartar o arsenal terapêutico disponível, cada vez com menos efeitos colaterais.

Por outro lado, é necessário que se tenha uma visão abrangente do ser humano. Se temos um cérebro com sua complexíssima estrutura e quase misterioso funcionamento, é claro que a neurofisiopatologia se tornou uma ciência respeitável.
Há e haverá, ainda, muitos avanços. Assim como abusos, infelizmente. Mas não somos, apenas, neurônios.


Afinal, somos seres-de-linguagem, essencialmente angustiados pelo conhecimento da morte e em constante conflito interpessoal, moral, etc.
Há que ser artista todo aquele que se dedica à Psiquiatria. Eis o meu desafio cotidiano...

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[ Republicado a propósito do "Dia do Farmacêutico", transcorrido dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro da gloriosa cidade fundada às margens da Baía da Guanabara.
Motivou-me a notícia de que as grandes redes de drogarias/farmácias estão abrindo verdadeiros "shoppings" para venda de remédios, produtos de beleza e "secos e molhados" em geral!
Em BH, já existem "megastores" de medicamentos... ]