12 maio, 2005

UTOPIA - POR QUE NÃO?

Às vésperas deste século, Eduardo Galeano escreveu suas previsões utópicas para o século 21, que se iniciava:

"No próximo milénio o ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões. Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães. As pessoas não serão programadas por computador, nem compradas no supermercado, nem espiadas por televisor. O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de engomar ou a máquina de lavar a roupa. As pessoas trabalharão para viver, em vez de viverem para trabalhar.
Será incorporado nos códigos penais o delito de estupidez, que cometem todos aqueles que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viverem apenas para viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca.
Em nenhum país serão presos os jovens que se recusem a cumprir o serviço militar.

Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas. Os cozinheiros deixarão de considerar que as lagostas gostam de ser cosidas vivas. Os historiadores deixarão de crer que existiram países que gostaram de ser invadidos.
Os políticos não acreditarão mais que os pobres adoram comer promessas. A solenidade deixará de se julgar uma virtude e ninguém tomará a sério nada que não seja capaz de assumir. A morte e o dinheiro perderão os seus poderes mágicos, e nem por disfunção ou por acaso será possível transformar o canalha em cavalheiro virtuoso. Ninguém será considerado herói ou louco só porque faz aquilo que acredita ser justo, em vez de fazer aquilo que mais lhe convém.
O mundo já não se encontrará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro caminho senão declarar a falência. A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos. Ninguém morrerá de fome porque ninguém morrerá de indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua. Os meninos ricos não serão tratadas como se fossem dinheiro porque não existirão meninos ricos. A educação não será um privilégio apenas de quem possa pagá-la. A polícia não será a maldição daqueles que não podem comprá-la. A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viverem separadas, voltarão a juntar-se, bem unidas ombro com ombro.
Uma mulher, negra, será presidente do Brasil e outra mulher, negra também, será presidente dos Estados Unidos da América; uma mulher índia governará a Guatemala, e outra o Peru.
Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer em tempos de amnésia obrigatória.
A Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés, e o sexto mandamento mandará festejar o corpo. A Igreja ditará também outro mandamento que havia sido esquecido: "Amarás a natureza, da qual fazes parte". E serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma."

Do mesmo Eduado Galeano, esta frase:

"A utopia está no horizonte:
quando caminho dois passos, ela se afasta dois passos;
eu caminho dez passos e ela está dez passos mais longe...
Para que serve a utopia?
Serve para isso, para caminhar."


Quem, ainda, ousa sonhar?

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Só para lembrar: Utopia = etim lat. utopia, nome dado por Thomas Morus (humanista inglês, 1477-1535) a uma ilha imaginária, com um sistema sociopolítico ideal; formado com o gr. ou- (do adv. de negação) + gr. tópos,ou 'lugar'; ver u- e top(o)- (Houaiss)