25 maio, 2008

Madeleine

Confesso que de Marcel Proust e seus sete volumes semi-autobiográficos compilados em À la Recherche du Temps Perdu só li, mesmo, o manjadíssimo episódio das madeleines [No Caminho de Swann]. Proust dá uma primeira mordida no tradicional bolinho francês, tão comum, e é invadido por lembranças inconscientes:
“Mas no mesmo instante em que aquele gole de bebida envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim”.




Enquanto isso, Amélia começa a separar os ingredientes para o lanche da tarde de domingo. Nenhuma sofisticação, a não ser as 200g de amêndoas torradas e moídas, os ingredientes estão logo ali: 250g de farinha de trigo, a mesma quantidade de açúcar e outro tanto de manteiga ou margarina.




Marcel Proust é minucioso quando tenta explicar o que lhe acontecia, enquanto sorve mais uma xícara de chá: “Invadiu-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa (...) Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal”.




Da sala, onde leio desimportâncias, escuto o ruído do batedor de bolos e imagino a cena: Amélia já mistura o açúcar à meia dúzia de ovos, acrescenta as amêndoas moídas e a farinha.




No livro, o francês filosofa: “Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz”.




Na cozinha, é hora de colocar o fermento em pó, apenas meia colher de sopa, explica minha mulher. Vem à estante da sala e busca a garrafa de rum, usado aqui para enriquecer as receitas, dar gosto às passas e aos bolos. Bastam 2 colheres de sopa da bebida caribenha e mais meia colher de essência de baunilha.




O escritor, lá em Tempos Perdidos, esforça-se ainda por saber a origem dos sentimentos que lhe invadiram a consciência: “Peço a meu espírito um esforço mais, que me traga de volta a sensação fugitiva”. Conseguirá?




Mais ruído vem distrair meu espírito e constato que já é hora de despejar a massa espessa em forminhas previamente untadas. O forno já estava ligado, forno bando, que é para não tostar as delicadas madeleines.




Parece que Proust até se esqueceu de continuar seu lanche, pois só fala mesmo do que se passa: “... sinto estremecer em mim qualquer coisa que se desloca, que desejaria elevar-se, qualquer coisa que teriam desancorado, a uma grande profundeza; não sei o que seja, mas aquilo sobe lentamente; sinto a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas”.




Também sou desancorado da mesa da copa, pois é hora de preprará-la para o lanche. O ambiente rescende a olores diversos, combinando rum, baunilha e amêndoas torradas. As xícaras são dispostas, os pratinhos aguardam as iguarias, os meninos são convocados: Gente, o lanche está pronto!




O fato causador das lembranças será procurado (à la recherche) por páginas e mais páginas, até que Proust constata: "a verdade, o ser que em mim então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo extratemporal, repartido entre o dia antigo e o atual, era um ser que só surgia quando, por uma dessas identificações entre o passado e o presente, se conseguia situar no único meio onde poderia viver, gozar a essência das coisas, isto é, fora do tempo."




Então é isso: nem sempre conseguimos determinar a localização exata de um sentimento, enlaçá-lo com os fios da memória e guardá-lo como se faz com velhos retratos ou cartas amareladas. O tempo, este, nos consome e nos escapa, tempus fugit, e o melhor lugar é mesmo fora do tempo.




Aqui, Amélia inventa, como sói aos artistas, e surpreende com um creme ganache: Deve ficar uma delícia, justifica. Nem é preciso duvidar, estão mesmo deliciosas as madeleines da Amélia:
Madeleine com creme ganache by Amélia. (Foto by Cláudio Costa)

16 maio, 2008

Com adrenalina ou sem adrenalina?

As vivências de um psicoterapeuta frente à diversidade de clientes, cada qual com suas demandas, defesas, auto-enganos, esperanças e sofrimento, aos poucos nos fazem construir uma espécie de amostra das infinitas possibilidades de estar-no-mundo.

Outro dia, ao escutar a aflição de alguém cujo filho transita entre a família e amigos marginais (com os riscos inerentes e os vacilos previsíveis), lembrei-me da contribuição de M.Balint às teorias de personalidade.

Ora o rapaz aprontava na rua, se envolvia com maus elementos, desafiava as autoridades e praticava transgressões pequenas e médias (uma quantificação absolutamente subjetiva); ora retornava tranquilamente à casa paterna, obedecia aos horários estipulados, dizia amar pai e mãe e valorizava a família. Tinha um porto seguro, o qual não abandonou nem mesmo quando os impasses com a lei-do-pai pareciam intransponíveis.
O pai, por sua vez, jamais negou atenção ao filho e, para o bem ou para o mal, exercia certo controle à base de promessas, presentes e raríssimas privações: eu compro o garoto, mas não tem outro jeito! Ele só faz o que peço mediante troca.

Minha aproximação ao tema deste post se deu há tempos (bota tempo aí) quando comecei a estudar Psicodrama com Pierre Weil e Lea Porto. Pierre acabara de lançar a tradução de seu "Psicodrama Triádico", co-autoria de Anne-Ancelin Schutzenberger. (Texto completo, aqui, em p.d.f.).

No capítulo 8, resume a "invenção" de Balint, criada para dar conta de explicar duas expressões comportamentais:
  • certo tipo de pessoas se comprazem em viver perigosamente, nem que seja em jogos e esportes radicais, enquanto outras fogem do perigo, temem o incerto, aferram-se à rotina e aos objetos.

O moço que causava tanta preocupação se diz atraído pela aventura, admira os marginais que não temem pela própria vida. Frequenta as bocas e as quebradas, justifica, pois é onde reina a alegria, a zoação, o não-estou-nem-aí, o vamos fundo, brother! Apressa-se em se distinguir deles, porém: não bebo, não fumo, não faço coisa errada; tenho família! Seu critério para diferenciar o 'certo' do 'errado' é bem elástico, convém dizer. Refere-se aos boyzinhos classe-média como rabos-de-peru.

Já outro pai queixou-se da filha, moça de 26 anos, que era insegura, não conseguia terminar nenhuma das três faculdades que iniciara, sempre se dizia incapaz de competir, não desgrudava da mãe, de quem dependia até mesmo para escolher o que vestir. Exemplifica com uma situação recente, quando a filha recusara um emprego porque teria de pegar ônibus e chegar tarde em casa. A jovem não se permitia uma aventura sequer, um passo além do bairro, uma conquista acadêmica. Aferrou-se à segurança do ventre materno?

Balint repara que muitos brinquedos em parques-de-diversões oferecem prazeres por meio de atirar ou bombardear, quebrar coisas, vertigens de balanços, carrosséis e rodas gigantes, jogos de azar, horóscopos, enfim, prazeres ligados a sensações de vertigens.

Se os sintomas do rapaz são o avesso dos apresentados pela moça, algo existe em comum: tanto o primeiro quanto a segunda têm uma base de apoio: o jovem, como um saltador de bump jumping, tem a garantia da corda que lhe cinge o corpo, o elástico que o trará de volta à rampa do salto. O paraquedista, o marinheiro, o piloto de avião, todos se lançam ao espaço, arriscam-se mas esperam retornar ao chão firme, sãos e salvos. Mas não recusam a adrenalina!

Balint aponta três características deste comportamento:
  • Um certo grau de medo consciente ou pelo menos a consciência de um perigo externo real.
  • O fato de se expor voluntária e deliberadamente a este perigo externo e ao medo que ele provoca.
  • A esperança mais ou menos firme de ser capaz de suportar e dominar o medo, de ver desaparecer o perigo e de estar à altura de reconquistar são e salvo a segurança.
A este tipo de pessoas ele deu o nome de Filobata; formou esta palavra a partir do termo acrobata, que significa o que anda sobre as extremidades, isto é, o que anda fora da terra. O filobata é o que gosta do arrepio provocado pelo fato de deixar a terra firme, ou o que a simboliza.

Já a moça que não decola para a vida, o que faz? Não abandona a base, não se desgruda do trampolim, tem medo de viver, permanece na barra da saia da mãe.

Trata-se, segundo Balint, de um comportamento que se caracteriza pelo agarrar-se a objetos que dão segurança quando a pessoa se sente ameaçada. Ou seja, evita sempre as situações filobáticas.
Inventou outra palavra, também derivada do grego: akneo, que significa “furtar-se, hesitar, agarrar-se”, e filia (busca, aproximação, amizade) e surgiu termo Ocnófilo.

Balint:
O ocnófilo é a pessoa que evita situações de risco, de aventura, e prefere permanecer em zonas seguras ou se agarrar a objetos. A grosso modo, o filobata gosta de gozar das dificuldades, da independência e dos espaços livres; o ocnófilo gosta de objetos e coleciona coisas.

Assim, aparece uma tentativa de classificar as pessoas pela filobacia e ocnofilia que apresentam na maior parte de seus comportamentos. Não sei se existem mais autores dedicados a isso, se se pode comprovar estatisticamente a existência destas personalidades, mas acho muito interessante. Qualquer definição que pretenda enquadrar as pessoas corre o risco de ser desmentida, tal a diversidade de fatores que determinam o agir.

Exemplifico com a demanda feita por um jovem marido, especialista em flertar com todas as mulheres, jogar conversas de duplo sentido e até cometer umas aventuras extra-conjugais. Imagine que o rapaz se queixou de sua insegurança e solicitava ajuda para ser mais corajoso! Como assim? perguntei. Ele: É que gostaria de separar-me da minha esposa e morar com uma colega de trabalho pela qual estou apaixonado... mas tenho medo de dar errado e minha mulher não me aceitar de volta. Provoco: Fale com sua mulher, quem sabe ela aceita? Ao que, de pronto, responde: De jeito nenhum! E se ela não gostar e me mandar embora? Aí eu posso ficar sem ninguém!
Seria o caso de um pseudo filobata? Um ocnófilo borderline?

Eu próprio já tive algumas experiências de risco: Saí de Belo Horizonte e fui hospedar-me na casa do Milton Ribeiro, em Porto Alegre. Apenas o conhecera via blog. E se ele fosse o Vampiro de Dusseldorf? Outra: Comi lasagna na casa do Dom Afonso, autodenomimado O Chato. Nunca o tinha visto, a não ser pela sua chatura no blog, e nem pensei que o gremista pudesse envenenar um torcedor do Clube Atlético Mineiro. Mas arrisquei: filobata, eu? Pior: aceitei carona em um Honda Civic, no Rio de Janeiro!!! Diagnóstico definitivo!

Mas sou mineiro, montanhês, desconfiado, apegado à família, agarrado com Amélia, caseiro, estável no mesmo emprego e na mesma profissão. Pois que seja, sou mesmo ocnófilo!


Definir alguém como filobata ou ocnófilo pode ser, realmente, reducionista demais. Balint e Pierre Weil sabem disso e afirmam que não existem os tipos extremos, mas todos oscilamos entre um polo e outro, dependendo das circunstâncias e das fases da vida.

11 maio, 2008

Cartão virtual


Se, hoje, o comércio está eufórico com os números e os lucros das vendas do Dia das Mães, isso pouco me importa;
Se as floriculturas ficam abarrotadas de gente, vendem flores e arranjos, constato sem emoção;
Se os shoppings - templos contemporâneos, atração turística, lazer para todos os gostos e poucos bolsos - engolem consumidores que adentram em seus corredores iluminados e refrigerados, é sinal dos tempos;
Se aquele menino ali que desenhou uma flor e uma caricatura desgrenhada e escreveu Mamãe, eu te amo! me perguntar se eu já fiz o mesmo, respondo:
- É claro, garoto! Só que a gente cresce, aprende a fazer blog e não tem mais coragem de fazer caricaturas.
Então, D. Aparecida, receba este post como o meu desajeitado eu te amo!

04 maio, 2008

Viagem afetiva

Bem sei que o ciclone previsto deixou sem luz o meu amigo Milton Ribeiro e muita gente mais lá pelas bandas do sul... mas, contrariamente às premonições do Serviço de Meteorologia, o fim-de-semana em Brasília-DF foi de tempo bom, em todos os sentidos: fizemos uma 'viagem afetiva', Amélia, Ana Letícia e eu.

Temos amigos valiosos na capital federal e queríamos estar perto deles e abraçá-los, para além do virtual internético ou dos telefonemas.

Assim, embornal a tiracolo, fomos num pé e voltamos no outro, mas a alegria dos encontros inundou nossos corações.
Primeiro, conhecemos a netinha meio-brasileira e meio-americana de Maria Auta e Valdir, numa festa de
segundo aniversário cheia de brilho, balões, brincadeiras e boa conversa. O papai Guga, que vimos ainda de calças curtas, agora é um jovem empreendedor lá nos States. O tempo passa...
No dia seguinte, hora de abraçarmos mermão Paulo e sua Letícia, de quem falei algumas vezes, em especial neste post de 2004.

Não era aniversário, mas também rolou a festa, juntou-se a família, filhos e namorado da filha, pois os laços afetivos são antigos e cultivados com encontros ocasionais, férias em conjunto, etc.
Não faltou champagne para o brinde de boas vindas.


'Quem encontra um amigo encontra um tesouro'. Pois então nos consideramos ricos, riquíssimos.