28 dezembro, 2007

Maria Cleonice

Maria Cleonice - é assim que gosta de ser chamada, pois "os nomes duplos inspiram nobreza"- acordou bem disposta.
Bonita, suave, de olhos azuis, ajeitou o cabelo, caprichou na maquiagem, borrifou um pouco de Poison nas curvas de seu pescoço e no colo bem feito. Os 41 anos não lhe cobram quase nada.
Feliz? Pode-se dizer que sim, embora o ex-noivo, Antônio, ainda a faça suspirar, com recordações que lhe avivam a libido. De verdade, nunca se afastaram; embora casado com Vanessa, o moço é seu colega de escritório. Além disso, mantêm explícita amizade e, para espanto de uns e admiração de outros, Maria Cleonice é íntima do casal - coisa dos tempos modernos.
Às nove da manhã, suavemente envolta pela fragância venenosa do perfume, ela está diante do ex-noivo que, mais uma vez, solicita-lhe visita a um cliente, na vizinha cidade de Santa Luzia:
- Não sei se é possível, Tonico, meu carro está na oficina.
- Pois lhe empresto o meu, vá no Corsa.
...
Lá pelas onze, Antônio explica isso à Vanessa que, no trajeto para casa, tomada por um ciúme medrado insidiosamente nos últimos tempos, demonstra-lhe desagrado:
- Benzinho, essa mulherzinha já tá abusando, você não acha? Tá sempre arrumando desculpa para ficar perto de você e, agora, nosso carro está com ela! Estou me segurando, não é de hoje!
Antônio evitava qualquer discussão. Contemporizou:
- Ah! meu amor... tá bom, tá bom, não vou dar mais colher de chá, você sabe que te amo!
A tempestade quase fora adiada se não tocasse o celular. Era Maria Cleonice:
- Oi, meu Tonico, passo na sua casa, devolvo o carro e almoço com vocês.
Indeciso entre não desagradar à mulher e à ex-noiva, passa o telefone à Vanessa:
- Você decide.
- Olhaqui, sua noivinha frustrada, fique no seu lugar, vê se desconfia e dá um tempo!
...
Às 16,32, o porteiro do prédio de Antônio e Vanessa abre o portão para o Corsa do 504.
Bonita, suave, de olhos azuis, Maria Cleonice ajeita o cabelo:
- O carro já está na vaga, Feliz Natal!
...
A fumaça toma conta do ambiente. Espessa e negra, provém da garagem. Os bombeiros são chamados.
Maria Cleonice comemorara o Natal incendiando o "corsinha do Tonico".
Na delegacia, explica:
- O fogo se alastrou, não foi minha culpa. Não queria queimar os outros cinco carros, lamentou.
Bonita, suave, de olhos azuis...
________
Publicado pela vez primeira em dez.2004.

24 dezembro, 2007

Natal são muitos

Cada pessoa experimenta um sentimento particular por ocasião do Natal: se dermos ouvidos ao que nos ensina a psicologia do desenvolvimento, as vivências da primeira infância, os vínculos primários e mais um caldo de imagens armazenadas no inconsciente configuram a matriz que sustentará o sujeito pelo resto da vida. Há controvérsias, bem sei, mas não se pode ignorar o conteúdo imagético e afetivo que se evoca em certas ocasiões, como no Natal, por exemplo.

Há os que se sentem plenamente imbuídos da idéia do sagrado e valorizam os rituais religiosos com a celebração alegre do nascimento do 'menino-deus': preparam-se no tempo do advento e comemoram a epifania como o acontecimento mais importante para o gênero humano. Trata-se de uma experiência mítica e místico-religiosa, que os afeta em sua singularidade e os faze se sentir partícipes de um projeto de salvação universal. Ser religioso importa num conjunto de crenças e, para alguns, uma fé convicta sustenta sua posição perante o mundo. Se, de um lado, a fé e o pertencimento ao grupo garantem a segurança do "um" pela identificação ao "outro", contudo não é suficiente: de que vale a fé sem as obras? O esgarçamento dessa dimensão ao longo dos séculos e sua incorporação pela cultura judaico-cristã-ocidental mitigaram as exigências éticas e reduziram a rituais o comprometimento exigido nos primórdios.

Inda mais, o avanço do capitalismo e seu mais perverso corolário, "não existem pessoas, o que existe é O Consumidor", descambaram na transformação das festividades natalinas em orgia consumista, cujos templos são os palácios dos shoppings ou as tendas abarrotadas de ofertas. A cada ano, o onipresente departamento de marketing inventa o 'produto dos sonhos' e nosso desejo é capturado pela promessa de felicidade infinita, aqui e agora. Basta comprar o celular G4, a tv de plasma, o laptop de mil recursos, o automóvel definitivo.

Não se pode negar que existam ainda muitas e muitas pessoas dotadas daquele 'sentimento oceânico' do qual se ocupou Freud: trata-se do anseio por um pertencimento ao mundo, desejo esse em que o medo da perda de amor se situa na dianteira do sentimento de autopreservação e segurança a partir da identificação com o universo em que o indíviduo vive. Para Romain Rolland, o pensador francês que criou este termo, o sentimento oceânico seria o fundamento do sentimento religioso. Creio que o perído natalino desperta uma certo olhar compassivo para o semelhante, servindo de alívio para a culpa que alguns carregam pela indiferença à fome, à miséria, à exclusão. Distribuem-se presentes, fazem-se campanhas de solidariedade, distribuem-se migalhas aqui e ali. O mundo parece mais cor-de-rosa, ainda há esperança quanto ao futuro da humanidade, o ser humano pode até ser bom. Mas a vida continua, cada qual mergulha na azáfama cotidiana em busca de acumular bens, riquezas e segurança, enquanto os excluídos aguardam o próximo Natal, que será usufruído apenas pelos sobreviventes. E la nave va.

Deparamo-nos com muitos que dizem detestar o Natal. Se uns criticam o consumismo, outros reclamam do trânsito, muitos se sentem angustiados com os gastos para presentear por pura obrigação. Mas há os que se sentem tristes, verdadeiramente deprimidos: o Natal é a pior época do ano, confessam. Às vezes dizem: 'não sei o porquê disso'. Bastam alguns minutos de atenção e nossos ouvidos se enchem de lembranças amargas, ressentimentos nunca resolvidos, culpa, raiva, solidão. Podem acusar a sociedade de ser hipócrita e não há como tirar-lhes a razão. Mas não se trata de ter razão, pelo menos na clínica.

É tempo de reencontros, reaproximações, visitas à família distante, encontro com vizinhos, abraços na repartição, festinhas de amigo-oculto (sempre chatas e burocráticas!)...

Como enfrentar tantas contradições? Mergulhar de cabeça nas compras? Comer, comer e comer? Isolar-se de tudo e de todos? Rezar e orar? Cada um encontrará seu jeito próprio, pois as receitas em oferta pela mídia nem sempre são fáceis de seguir.

Quanto a nós, vivenciamos um pouco de tudo isso. Reencontramos os amigos, desejamo-lhes sinceramente um Feliz Natal (cada qual sabe como é ser feliz - não?), decoramos a casa, repartimos uns poucos presentes. Evitamos o consumismo e o desperdício. E o aniversariante do dia, aquele que deu origem a tudo isso, este tem um lugar simbólico na simplicidade de um presépio artesanal. Amélia, Ângelo e Renatinha representaram na estante uma pequena vila do interior. Os caminhos são tortuosos, como a vida. Mas as cores são vivas e, um pouco afastado, lá está ele, o Menino:

Presépio feito por Amélia, Ângelo e Renatinha,

com casinhas-de-barro (artesã: Jovita, do vale do Jequitinhonha-MG) Foto by Cláudio Costa.

22 dezembro, 2007

E F E M É R I D E S

Bolo de chocolate e cerejas, com creme ganache: Arte da Amélia. Foto by Cláudio

1. Ontem foi o aniversário da Ana, filhota. A proximidade com o Natal torna o mês de dezembro mais cheio de festividades. Ana não deixou por menos: festa no trabalho, festa-show na Utópica Marcenaria, com direito a show da Banda Copo Lagoinha e presença de amigos e amigas e, last but least, um almoço aqui em casa, preparado pela Amélia, claro! Vieram: tio Clóvis & Consola, tia Zilah, tia-madrinha Rosa, prima Adélia, amigas Gil, Renata e Manuela, o mano Ângelo & sua Renatinha. Ou seja, o apê se encheu de gente e de alegria. Filhota, parabéns!

2. Outro dia foi a inauguração da "árvore-de-natal-da-Lagoa-da-Pampulha". Parece que já está virando tradição. Começou no Rio -Lagoa Rodrigo de Freitas-; São Paulo construiu a sua no Ibirapuera e, agora, Beagá entra no esquema. Há patrocínio comercial, claro, mas não deixa de ser mais um motivo para a gente circular pelos lados da Igrejinha da Pampulha. Pelas
fotos que vi, parece que a "deles" está mais bonita, mesmo! A vantagem é que essas imensas estruturas são flutuantes e temporárias. A Ana aproveitou uma foto minha e colocou como banner no Mineiras, Uai!. Ficou bonito.

Árvore de Natal na Lagoa da Pampulha-BH. Fotos & composição by Cláudio Costa. Ver mais.

16 dezembro, 2007

O Rio de Janeiro continua lindo, amigão!


1. Mais um pulinho ali: estive, ontem no Rio. Tempo bom - sol sem muito calor, mas nada de folgar: fui de manhã e voltei à noite, já que tudo se resumiu em trabalho.

O que vi do Rio?

1. Aeroporto horroroso, o tal do Tom Jobim. Saindo de lá, em direção à zona sul, você pega a 'linha amarela' (cercada da favelas) ou a 'linha vermelha' e cai na Av. Brasil, cujo trânsito é qualquer coisa de louco. Pro centro - minha reunião foi na Presidente Wilson - o caminho passa pelos armazens decadentes e sujíssimos do porto, numa avenida, a Rodrigues Alves, que avança debaixo de uma via suspensa. Tudo muito feio e, por suposto, perigoso.


2. Aos poucos, o cenário do 'Rio Antigo" se mostra: Mosteiro de São Bento, Rua Santa Luzia, Academia Brasileira de Letras, Teatro Municipal, Candelária e o Bar Amarelinho, já na Cinelândia. Andei por esses caminhos há muito tempo e nunca me sairam da memória as ruas estreitas, igrejas coloniais e gente, muita gente.


3. E o Rio de Janeiro continua lindo. Literalmente abri uma cortina e vislumbrei o Aterro do Flamengo, Museu de Arte Moderna, Monumento aos Pracinhas, Marina da Glória, Outeiro de N. S. da Glória e, lá longe, o Pão de Açucar. Estava dentro de um cartão postal:



4. À tardinha, hora de voltar pro Galeão. Deram-me uma dica: vá ali pro Santos Dumont e tome o frescão, é só R$ 6,50. Como o tempo sobrava, aceitei a alternativa. Mas...



Mas em frente ao Santos Dumont (a parte nova) não vi ponto de ônibus. Perguntei ao segurança que me apontou o lugar correto, uns 200m além. Virei as costas quando escuto:


- Ô amigão!


Era o segurança, correndo em minha direção e já dizendo:


- Olha aqui, tem um amigão meu ali, mexe com frota de carro executivo, ele te leva.


- Mas não estou com pressa, amigão (nessa hora, é bom ter "amigões", não?).


Estacionado, vi o tal-que-mexe-com-frota-de-carro ao lado de um Honda prata, todo sorridente, um corpanzil que dava três de mim. Pensei: -Mais parece um leão-de-chácara, vigilante de boate.


Hesitei por meio segundo e perguntei o preço da corrida.


- O preço é 50 paus, mas faço por 25, amigão.


- Só tenho 15, não vai dar.


- Dá sim, amigão, vamo lá!


Com tanta prova de amizade, não resisti. O segurança me olhava todo sorridente e o amigão/motorista já abria a porta do banco traseiro. Delicadezas cariocas, presumo.


O motorista contou vantagens do seu novo Honda, dizendo que, agora, estava casado com aquele carro. Empolgadíssimo, explicou:


- Foi ontem, foi ontem mesmo que o emplaquei.


Elogiei ao máximo sua nova esposa, enquanto voltávamos pelo mesmo trajeto da manhã: "Pelo menos estamos indo em direção ao Tom Jobim", pensei.


5. Voei de volta pela Gol, tratado como marajá: 1 horinha só de atraso, poltrona apertadíssima e lanche requintado: um pacote de amendoim torrado e 1 copo dágua!


6. A aproximação do Aeroporto de Confins foi sob os últimos raios de sol:



7. Em casa, Amélia me pergunta:


- E aí, meu bem, como foi lá no Rio?


- Ótimo, arranjei um amigão!

09 dezembro, 2007

Oscar Niemeyer e eu

As comemorações do centenário de Oscar Niemeyer se fizeram ao longo deste ano. Mesmo quem não tem interesse especial em arquitetura se depara, cotidianamente, com referências às obras do aclamadíssimo arquiteto.

Foi Juscelino Kubitschek, prefeito da capital mineira na década de 40, quem abriu espaço para Niemeyer, entre nós: convocou-o para transformar a Lagoa da Pampulha em atração turística. Oscar projetou, então, o Iate Clube, o Cassino, a Casa do Baile e a Capela de São Francisco de Assis. Dez anos depois, já governador, JK faz outro mutirão de obras e, novamente, convoca o já consagrado arquiteto. Novas obras são construídas: o Colégio Estadual de Minas Gerais (1954), a Biblioteca Pública (só terminada mais tarde), o Edifício Niemeyer (1955), o Banco Mineiro da Produção, hoje Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge), a Escola Técnica da Gameleira e o Conjunto JK. (Veja o vídeo desta reportagem (8min) da GloboMinas). Para ver fotos, plantas e descrição das obras em BH, clique aqui.

Niemeyer, entretanto, não é unanimidade. Alguns criticam a repetição de fórmulas ou mesmo o que chamam de hostilidade do ambiente de moradia e trabalho e, até mesmo, o uso que dele fazem alguns políticos: ao invés de promoverem concursos fazem a contratação direta do arquiteto e se blindam contra críticas.

Quando universitário, morei por quatro anos num apartamento criado pelo Oscar Niemeyer! Uma caixa de vidro e cimento, com janelões voltados para o norte, inundada de sol durante o inverno e de luminosidade ofuscante o ano inteiro. Os corredores imensos, totalmente dependentes de iluminação artificial, são desafio para os claustrofóbicos. Trata-se do enorme Conjunto JK, uma "cidade" com 5.000 habitantes! Habitei o nono andar do bloco mais baixo (24 andares). O espigão tem 36. A foto abaixo fala por si:



Apesar disso, gosto muito das 'invenções' de Niemeyer e me surpreendo cada vez que me deparo com suas obras. Em Curitiba, visitei o Museu Oscar Niemeyer de onde recebi, outro dia, um pedido inusitado: querem reproduzir algumas fotos minhas da Igrejinha da Pampulha. Viram-nas no meu álbum do Flickr, disseram que estão ótimas e ilustrarão uma revista especial sobre Niemeyer! Claro que autorizei e aguardo, ansioso, receber um exemplar.

Àqueles que visitarem nossa cidade, fica o convite: além do pão-de-queijo, do quiabo-com-angu e de muita prosa, conheçam também a BH de Niemeyer.

21 novembro, 2007

Pulinho ali

Estarei ausente de 5a. a sábado, agora, pois vou dar um pulinho ali em Maceió.
Nada de praia... trabalho, mesmo.
Darei um curso sobre transtornos psiquiáricos mais comuns na infância e adolescência e uma palestra: Da Pediatria à Saúde Mental. Sábado, à tarde, pulo de volta às Gerais.

17 novembro, 2007

Guias para uma viagem (ao) interior (*)



À entrada de uma caverna, deparo-me com três guias turísticos que me fazem propostas distintas:

O primeiro, com uniforme próprio e aparência de experiente e seguro, interroga-me sobre o motivo que me levou ali. Digo-lhe de meu desejo de conhecer a famosa gruta. Confesso-lhe meus receios, medo de entrar e ansiedade pelo que poderia encontrar lá dentro. Termino assim:
- Sr. Guia, o que tenho? Como fazer para resolver isso?
Após anotar tudo numa ficha, meu nome e dados pessoais, pergunta-me sobre minha família e, diz:
- O sr. tem uma espeleofilia associada a uma espeleofobia de origem idiopática. Siga minhas instruções e tudo será resolvido.

O segundo guia, cuja indumentária não o distinguia das demais pessoas, escuta minha demanda com solícita atenção e fala:
- Compreendo seu conflito. Entraremos juntos. Na medida em que você sentir alguma coisa, algum incômodo, alguma curiosidade, explicar-lhe-ei tudo. Fale à vontade, expresse quaisquer sentimentos e caminhe no seu ritmo: estarei sempre por perto. Aos poucos, se esclarecerá o medo e vai conseguir dominá-lo.


O terceiro guia escutou-me com atenção e solicitou-me que falasse um pouco mais. Explicasse melhor o que eu queria. Era minucioso! Quase nunca concluía ou opinava. Seu silêncio estimulava-me a continuar.
Finalmente, convidou-me a entrar na caverna escura e desconhecida para mim e fez uma proposta estranha e instigante:
- Nessa viagem (ao) interior, você deverá falar tudo que lhe vier à cabeça. Não esconda nada, por mais absurdos ou inconvenientes que pareçam seus pensamentos, idéias, os sentimentos e seus sonhos. Pode ser que surjam lembranças, experiências, personagens remotos de sua vida... Teremos, provavelmente, um passeio longo. É possível que você descubra coisas impensáveis, esquecidas e, mesmo, valiosas. Quem sabe o que, de verdade, você teme? Se isso acontecer - para isso estou aqui - então você poderá assumir todo seu desejo. Conhecendo-o, saberá para onde ir e o que buscar. Não será fácil. Vamos?

Certamente caricatural, essa analogia me ocorre, com freqüência, quando tento explicar o modus operandi do psiquiatra, do psicólogo e do psicanalista.
Diante do mesmo paciente, suas propostas de trabalho serão, com certeza, diferentes, pois seus métodos e técnicas se sustentam em teorias diversas. Ninguém poderá garantir os resultados, embora alguns profissionais se considerem deuses infalíveis, oniscientes e poderosos.

SE não encontrar o “guia” que lhe convém, o viajante deverá reformular sua demanda.

Um guia não poderá avaliar o outro a partir dos próprios princípios, uma vez que a coerência interna de uma teoria, aliada à prática, jamais alcançará isenção suficiente, ou a neutralidade epistemológica ideal.
Psiquiatria, Psicoterapia e Psicanálise são campos distintos. Às vezes se opõem e se contradizem, outras vezes se aproximam, chegam à interseção e podem interagir.

O que vai definir a escolha de um ou outro profissional e sua “arte” de trabalhar pode ser a demanda, a sorte, o azar, um anjo ou um diabo. Entretanto, é necessário que não nos enganemos, já que, na maioria das vezes, o cliente é aquele que diz:

- Dr., ajude-me a mudar sem que nada mude.

Psiquiatra, Psicólogos ou Psicanalista?

Psiquiatra é aquele profissional que cursou a Faculdade de Medicina e se especializou no tratamento de doenças mentais. Antes de tudo, um médico que deve fazer diagnósticos e pode prescrever medicamentos, remédios, fármacos.
O Psicólogo, por sua vez, cursa uma faculdade de Psicologia e, na clínica, especializa-se em alguma técnica psicoterápica. Trabalha com técnicas diversas, individualmente ou em grupo, mais ou menos diretivos. Alguns se encaminham para as organizações, empresas, dão consultoria, fazem seleção profissional, etc.

Tanto um quanto outro podem fazer formação psicanalítica, passando pelo processo de sua própria análise e, aí, tornando Psicanalistas.
Estes, embora tenham por fundamento a teoria freudiana do inconsciente (Sigmund Freud), podem desempenhar seu ofício de acordo com linhas teóricas consequentes aos seguidores do fundador: kleinianos (Melanie Klein), winnicottianos (Donald Winnicott), junguianos (Carl Gustav Jung), lacanianos (Jaques Lacan) - para citar os mais comuns. Explicam o adoecimento a partir de conflitos internos entre forças contraditórias dentro do próprio indivíduo, principalmente na repressão aos impulsos sexuais, etc.

Dentre os próprios Psiquiatras - todos médicos -, podemos encontrar:
a) os psiquiatras mais organicistas ou biológicos, que defendem a idéia de que o adoecimento psíquico é devido a alterações bioquímicas, problemas com os chamados neurotransmissores - substâncias que fazem a transmissão dos impulsos nervosos dentro do cérebro, tipo: dopamina, serotonina, noradrenalina, norepinefrina, ácido gamaaminobutírico. Consequentemente são mais adeptos da medicação e sempre tratam com remédios.
b) Outros, em geral, passaram por uma experiência analítica ou psicoterápica, e consideram o uso da palavra (talk therapy) como o recurso terapêutico fundamental, sem dispensar o uso dos fármacos, cada dia mais e mais eficazes. Dispõem-se, entretanto, a "escutar" o que o paciente tem a dizer (ou teme dizer).

Alguns pacientes referem-se a estes dois grupos com expressões do tipo:
a)psiquiatra médico – o que só receita remédio –
b)psiquiatra psicólogo – aquele que conversa!

É evidente que tal polaridade esconde duas armadilhas a serem evitadas:
“A primeira é o medicalismo, que responde ao pedido de ‘remédio’ com a solução química, tida como mais rápida e eficaz, como se não houvesse outro ‘remédio’ para o sofrimento.
A segunda é o psicologismo, que responde ao pedido de soluções para o ‘trauma’ , entendido como ameaça ou castigo psicológico por uma conduta errada, com a tarefa moral de corrigir o erro através de uma pedagogia supostamente esclarecida”. (Ana Cristina Figueiredo)
Qualquer simplificação pode ser prejudicial ao suposto paciente: negar-lhe a escuta em nome da causalidade puramente neurofisiológica ou negar-lhe a ajuda química, sob pretexto de que todo o adoecimento é 'psíquico' ou 'social' ou 'falta de vontade', etc.

Não cair nessas armadilhas foi o que, surpreendentemente, conseguiu um clínico, aluno meu em um dos cursos que ministrei para profissionais da rede pública em Belo Horizonte:
Relatou o acontecido num Posto de Saúde, quando, diante da falta do cardiologista, uma senhora muito nervosa, esbravejante, ameaçava chamar a TV para testemunhar a “desorganização” do serviço.

Nosso clínico se prontificou a atendê-la.
Pediu a receita anterior do cardiologista, para fazer a prescrição. A senhora imediatamente saca da bolsa um papel dobrado, entrega-o ao médico, que constata, surpreso, tratar-se de uma Certidão de Casamento! A mulher, logo, percebe o engano (ato falho?) e quer retomar o papel:
– Doutor, eu me enganei.
O médico, de pronto, retruca:
- Estou vendo que seu problema é, realmente, de coisas do coração.

Foi o que bastou para a paciente, surpresa, assentir com a cabeça. De imediato principia a narrar suas atribulações conjugais. Ao final, ela própria pede para ser encaminhada ao serviço de Psicologia. E, é claro, prescreveu-lhe o antihipertensivo, pois a hipertensão era real.

Moral da história: cada turista tem o guia que merece.

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(*)Republicado.

04 novembro, 2007

Convicção

O fato é verdadeiro, assegura-me a fonte. Conto o milagre, mas não dou o nome do santo:
Na quarta à noite (31.out), um avião da TAM decolou de Curitiba, lá pelas 23 horas, com destino a Porto Alegre. Logo que saiu do chão, começaram os problemas: o piloto não conseguiu recolher o trem de pouso e decidiu voltar para consertar as tais rodinhas.
- Vamos pousar novamente, avisou o comandante. Antes, porém, voaremos em círculos para gastar todo o combustível, por precaução. Mantenham-se calmos. Espero que não haja problemas.
Os passageiros não contiveram sua apreensão, que logo se transformou em ansiedade e chegou à beira do pânico. Uns reagiram com choro; outros, com terror e um grupo, que parecia ser de uma mesma Empresa, resolveu fazer uma reza coletiva.
Oravam em voz alta. O tempo passava, nada de o avião descer. Lá fora, tudo escuro, nem mesmo as luzes da cidade eram avistadas.
O burburinho aumentava e alguém gritou:
- Calma aí, gente! Vamos fazer uma reza coletiva. Todo o mundo de mãos dadas, que é pra fazer uma corrente de energia positiva! Se a fé remove montanhas, porque não pode segurar um avião no céu?
Tudo ia bem, até que um passageiro recusou-se a dar a mão. Pressionaram o homem:
- Dá a mão, ô ateu, senão quebra a corrente! Você está querendo que aconteça um acidente? Olha lá que Deus castiga!
E o cara firme:
- Não dou, não dou e não dou!
Esqueceram a reza e ficou todo mundo revoltado com o sujeito-que-não-dava-a-mão. Insistiram, insistiram tanto que ele falou:
- Não é porque vamos morrer que vou começar com veadagem.
Gargalhadas explodiram. Esqueceram a reza e as mãos.
Mais alguns minutos, a "aeronave" aterrisou, foi substituida e a viagem recomeçou.
Graças a Deus!

02 novembro, 2007

Samba, suor e cerveja (não nesta ordem)

Item 1. Suor: nem eu tô acreditando, mas entrei pr'uma academia. Não vou dar o endereço, pois não faço propaganda de graça. Se o mulheril descobrir, vai lotar. Ou melhor: vai bombar. Quanto a mim, só quero suar e gastar as calorias ingeridas na véspera. Coisa bem prática, não? Mas o calor desta Primavera, requer cuidados: não à desidratação. A solução está no ítem 2.


Item 2. Cerveja: a loura gelada que desce redondo não é mais vilã, garante o Daily Mail, traduzido pelo site da BBCBrasil e copiado por todos os jornais e blogs (originalidade pouca é bobagem!).


Resumo da ópera:
Na pesquisa liderada pelo professor Manuel Garzon, 25 estudantes correram em uma esteira, sob temperatura de 40º C, até ficar exaustos.
Em seguida, os pesquisadores mediam seus níveis de hidratação, habilidade de concentração e coordenação motora.
Metade deles recebia dois copos de cerveja, enquanto o resto recebia água. Depois disso, todos podiam beber quanta água quisessem.
Segundo o Daily Mail, os estudantes que beberam cerveja demonstraram níveis de hidratação "um pouco melhores" do que os que beberam apenas água.
Garzon acredita que o dióxido de carbono na cerveja ajuda a matar a sede mais rápido, enquanto os carboidratos da bebida substituem as calorias perdidas durante o exercício físico.


Pois eu já me previno: vou tomar cerveja todo domingo, terça e quinta, pois nas segundas, quartas e sextas tenho academia. É claro que nos dias de malhação igualmente vou repor os eletrólitos. Sábado e domingo, por via das dúvidas, mais um pouquinho, pois o calor tá demais. A barriga pode não diminuir, mas de desidratação não morro tão cedo.


Item 3: Samba: Amanhã, dia 3/11, o grupo Chapéu Panamá, a banda dos filhotes Ângelo & Leo, vai gravar um CD ao vivo! A família já tá se aprontando pro show, que será gravado pela Rede Minas: programa Palco Brasil/Feira Moderna.
Hoje, o jornal Primeira Página, entrevistou 4 dos 10 integrantes do Chapéu Panamá. Tente ver o vídeo aqui ou aqui.

31 outubro, 2007

A Town Where All the World Is a Bar

Os belorizontinos têm orgulho de descrever sua cidade como a "capital brasileira do bar" - the bar capital of Brazil, no dizer da reportagem do caderno Travel, do New York Times:

O artigo de SETH KUGEL provocou reações ambivalentes em muitos de nós, pois fala com todas as letras que Beagá é quase completamente desconhecida fora do Brasil, apesar de ser uma metrópole. Assim explica a desimportância da capital de Minas:

Its international anonymity was born of no coastline and thus no beaches, no famous Carnival and thus no February madness, and no big attractions save a few buildings designed by Oscar Niemeyer that pale next to his famous works in Brasília.

A gente não tem praia, não tem Carnaval e nem grandes atrações, a não ser uns poucos edifícios projetados por Niemeyer! Caramba! como é ruim escutar/ler isso no NYT. A gente quer só elogios, a gente às vezes se acha... Quequiéisso? Yes, nós temos barzinhos, botecos, Mineirão, Pampulha, serras, cachoeiras, museus... Mas o dedinho na ferida tá doendo: - Vocês não têm praia! - O carnaval em BH não existe! (tudo verdade, sniff, sniff).

E agora? penso eu: como vou convencer os gaúchos Milton e Afonso a retribuir minha visita aos pampas? Como vou alardear meu bairrismo pros quatro cantos do mundo? E tantos outros blogueiros que sonham em vir provar de nossas delícias, da "comida di buteco", do queijo canastra, da pinguinha da roça?

Ah! mas o SETH KUGEL, ressalta a menina-dos-olhos do belorizontino, o Mercado Central. É, realmente, imperdível. Cita o nome de alguns barzinhos e faz recomendação especial à região de Macacos.

Finalmente, aos que se abalarem do hemisfério norte para conhecer a "capital dos bares", há um minidicionário básico, pra gringo nenhum ficar sem sua geladinha:

Cerveja (sare-VAY-zha): beer;

Garrafa (ga-HAHF-ah): bottle;

Chopp (SHO-pee): draft beer;

Mais uma!: I’ll have another!;

Desce mais uma rodada: One more round;

Saideira (sah-ee-DARE-a): One last round.

Sugiro que esta conversa continue regada a uma cervejinha com tira-gosto mineiro em um dos 12 mil bares da cidade. Ou já são 15 mil?

27 outubro, 2007

Mais uma vez: Soié


Dia 28 de outubro é data de dupla comemoração em nossa família:

a. aniversário do Soié, meu pai. Sobre ele escrevi: Soié, o Espirituoso. Confiram.


b. aniversário de nosso (Amélia e eu) casamento. Veja como tudo começou.


Amanhã estaremos todos em Nova Era para abraçar o Soié - como é conhecido - e, mais uma vez, elevar um brinde de agradecimento pela vida saudável, risonha e franca.


Será mais uma festa em preparação aos 60 anos de casamento do meu pai e minha mãe, a se realizar ano que vem.


Tudo são festas.

20 outubro, 2007

Civilidade para... médicos!

Conheci a palavra "civilidade" aos 11 anos.
É claro que, naquela época, aprendi muitas outras coisas que me marcaram e determinaram os rumos de minha vida. "Civilidade", porém, emergiu do pré-consciente ao me deparar com o conteúdo do pacote entregue pelos Correios: o livro "Etiqueta Médica", enviado como presente pelo Conselho Regional de Medicina (MG) para todos os médicos de Minas.

Foi aos 11 anos que frequentei as primeiras Aulas de Civilidade, assim denominadas as palestras semanais proferidas pelos padres-professores do vetusto
Colégio do Caraça. Pretendiam ensinar aos recém chegados alunos as boas maneiras: como proceder à mesa, como relacionar-se entre colegas, como estudar, como tratar os mais velhos e as autoridades, cuidados corporais, tom de voz, propriedade nos vestir, recepção de visitas, cuidados com quem nos hospeda, virtudes da polidez, discrição, gratidão, etc.

Pois esses assuntos todos e muito mais são retomados pelo Dr. Alcino Lázaro da Silva, do qual tenho lembranças das aulas de cirurgia.

Etiqueta Médica não é simples manual de boas maneiras, um rol de salamaleques, frescuras ou futilidades. Pelo contrário, seus tópicos e comentários têm profunda interseção com e Ética. Contém dicas e recomendações que visam garantir o melhor resultado do ato médico e giram em torno do conforto e respeito ao paciente. Isso significa ÉTICA.

O Dr. Alcino bem sabe das mazelas da formação médica, no que tange à capacitação humanística. Privilegia-se o conhecimento dito científico e se alimentam os sonhos onipotentes de muitos jovens, movidos pela sedução do 'avental branco' e a constelação de fantasias de ascenção social.

Não foi sem cálculo que reproduziu, na folha de rosto do libreto, uma frase de George Bernard Shaw:

"É isso que faz do estudante de medicina a figura mais desagradável da civilização moderna. Falta de respeito e de boas maneiras"
(in O Dilema do Médico).

Há ítens dedicados ao avental, vestuário, pontualidade(*), sigilo, como lidar com os acompanhantes, uso de telefones, o corredor do hospital, etc. Dois verbetes se referem à etiqueta cibernética (internet) e uso do correio eletrônico.
Atento aos novos hábitos sociais, impreganados de informalidade, fala até da goma-de-mascar:

"Não é elegante examinar mascando. Há dificuldade em se expressar, por dois motivos. A compreensão fica difícil pelas palavras truncadas e repassa-se uma sensação de maus hábitos alimentares. Para não dizer que algum perdigoto pode ser transferido para o paciente". [pag. 16]

Ao trabalho médico iluminado pelo saber, aquecido pelo humanismo e impregnado de ética, Dr. Alcino fornece pitadas de 'boa conduta', etiqueta e... civilidade.
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(*) As pesquisas sobre o que mais irrita os usuários de serviços médicos, nos Estados Unidos, indicam o tempo de espera nos consultórios, por causa da impontualidade dos colegas. Se lá é assim, aqui é pior! Ou você nunca passou por isso?

18 outubro, 2007

Todo dia é dia de médicos e... doentes.

Todo dia é dia do Médico e do Doente. Alguns podem se iludir de que sempre comemorarão apenas o 18 de outubro, esquecendo-se de que, em algum momento, serão igualmente objeto de cuidados, ou seja, pacientes. Nunca me esqueço disso e creio que, por essa razão, tenho ótima relação médico-paciente. Dos que se julgam semi-deuses - sempre os há em qualquer profissão - quero distância!

Fiz o copy&paste da Folha de São Paulo, pois compartilho as idéias tão bem expressas pelo colega paulista, Miguel Srougi:

- Os médicos estão infelizes com os salários desonrosos. Mas imaginar que essa é a causa principal do desalento é uma simplificação injusta
Hoje, no dia dos médicos, resolvi homenageá-los. Resgatei na memória pesquisa de 2005 do Ibope sobre as instituições mais confiáveis na nossa sociedade. Como antes, me enchi de encantos: ganharam os médicos, com 81% das indicações, à frente dos padres (71%) e dos militares (69%).
Resgatei também na memória aquele momento quase indescritível, os olhos marejados e agradecidos de alguém reconquistado para a vida. Emoções incomparáveis, que só um médico pode usufruir.Nesse ponto, uma pergunta inevitável.
Apesar do Ibope e dos momentos ricos, estariam os médicos brasileiros felizes com seu entorno e seu destino? Comecei a ficar aflito ao relembrar o noticiário recente: greve dos médicos paralisa o atendimento; cirurgiões se negam a realizar intervenções pelo SUS; pacientes morrem na porta de hospitais; médicos suspendem cirurgias cardíacas e abandonam centenas na fila de espera.A aflição começou a aumentar quando me perguntei: estariam os médicos ficando insensíveis e deixando de se postar ao lado de seus parceiros, lutando contra o sofrimento?
O próprio noticiário ofereceu-me pistas para compreender a situação: em Fortaleza e em Alagoas, o salário mensal dos médicos do setor público oscila entre R$ 726 e R$ 1.500, para meio dia de trabalho; os cirurgiões da Paraíba recebem, em média, R$ 76 por intervenção que realizam no sistema público de saúde; hospitais e leitos de terapia intensiva foram inaugurados por políticos e, depois, abandonados por falta de provisão para contratação de pessoal, aquisição de equipamentos e custeio; hospitais universitários federais estão desamparados, devem R$ 450 milhões e estão totalmente desaparelhados, em alguns deles o déficit de pessoal chega a 700 funcionários; equipamentos avariados obrigam pacientes mineiros a viajar quatro horas para complementar tratamento de radioterapia.A aflição ficou quase insuportável quando compreendi que os médicos estão, sim, infelizes com os salários desonrosos.
Contudo, imaginar que essa é a causa principal do desalento representa simplificação injusta e mal-intencionada.Os médicos têm vocação para exercer com altruísmo sua missão, defendendo a condição humana e a sociedade. Na prática, são afrontados por um sistema de saúde imerso na incompetência, na indecência e na indigência, frustrando-se quando exercem a ação médica. É irrealista esperar que eles pratiquem condignamente sua profissão quando os instrumentos para uma vida digna lhes são subtraídos por gestores indecentes.Os nossos governantes, com felizes exceções, transformaram a saúde em balcão de negócios obscuros e de trocas de favores, destruindo a promissora estrutura médico-hospitalar edificada no Brasil entre os anos 40 e 60.
Os salários do pessoal da saúde foram aviltados e, hoje, só os idealistas ou os desamparados se sujeitam a trabalhar em serviços públicos. Como exigir que um médico, recebendo R$ 726 ou mesmo R$ 1.500, deixe de ter três ou quatro empregos, trabalhando até a exaustão, ou se mantenha atualizado, quando um livro técnico custa entre US$ 50 e US$ 300 e quando cursos de aperfeiçoamento têm de ser pagos pelo próprio profissional?
Essa situação se torna mais desconfortável se lembrarmos que cerca de 95% dos médicos brasileiros são assalariados, prestando serviços a entidades privadas de assistência, que contribuem para o desânimo ao cercear a autonomia e criar restrições exageradas e perigosas às ações médicas.A sociedade também alimenta esse processo perverso, assumindo atitudes de intransigência desconcertante ante seus médicos. Em todos os momentos, exige deles nada menos que a perfeição, não aceitando sequer a derrota em fatos inexoráveis, como a falibilidade humana, a existência de doenças incuráveis, a decadência pelo passar dos anos, a morte implacável.
Sociedade que, quase sempre, desconsidera o ambiente circundado pela indigência e pela violência no qual atua um sem-número de médicos brasileiros. Ignora-se a situação cruel enfrentada por esses profissionais, que exaurem seu talento e seus ideais ao clinicar em hospitais públicos caóticos, onde escasseiam ou inexistem materiais e medicamentos mais simples, onde se desgastam tratando de doenças já erradicadas em países mais sérios e onde um paciente com câncer espera até seis meses para ser internado, se sobreviver para isso.Enfim, os médicos da nação estão realmente infelizes, e muitos brasileiros julgam que, tanto na saída como na chegada, o sentimento tem a ver com salários ou benefícios materiais.
Contudo, é importante que se compreenda que os drs. Severino Baiano, José Pernambucano, João Paulista ou Antonio Mineiro, que dedicam suas vidas e emoções para aliviar o sofrimento alheio, estão infelizes, quase nunca por causa de interesses pessoais menores, mas porque a maioria é vítima da combinação perversa de uma sociedade complacente e governos indecentes.
Realidade que Riobaldo, o jagunço filósofo de Guimarães Rosa, sabia muito bem como descortinar: "Digo, o real não está na saída ou na chegada, ele se dispõe para a gente no meio da travessia".
Miguel Srougi, 61, médico, pós-graduado em urologia pela Universidade Harvard (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP.

14 outubro, 2007

Travessia

Entre a partida e a chegada há o que Guimarães Rosa considera a 'travessia':


- Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada.


É o que acontece nas viagens, antevividas desde o sonho e a preparação, a compra das passagens, o roteiro, a esperança ou o desejo dos encontros. A vida é, igualmente, uma viagem e uma travessia, cheia de mistérios e acontecimentos, alegrias e tristezas. Buscam-se para o viver: explicação, sentido, controle, conhecimento, leveza, memória que preserve os bons momentos por meio de imagens e recordações, fotos e lembranças.

Por isso narramos e descrevemos o acontecido, as peripécias, aventuras e vicissitudes, percepções e impressões. E, no narrar, revivemos...

A viagem que encerramos na madrugada de hoje teve muitos objetivos: participar do Congresso de Psiquiatria, passear pela serra gaúcha, comemorar nosso aniversário de casamento e rever amigos.

Para cada ítem caberá diferente linguajar, mesmo que o narrador seja o mesmo. Fatos serão ressaltados de acordo com a pretensa objetividade (jamais plena, bem o sabemos).

Mas a fidelidade que persigo, agora, é falar com alma e coração do Encontro que venceu o éter cibernético e o écran luminescente dos computadores e se concretizou em convivência de amizade. Na Travessia entre partida, chegada e retorno, tivemos histórias, famílias, amizade.

Falar com alma e coração do que experimentei nesses dias em Porto Alegre é tarefa para poetas, daqueles que ultrapassam o simples manuseio das palavras e transformam o vivido em 'universal', retratando o indizível das travessias que são as experiências cotidianas, encontros e desencontros.

Assim, meus caros Afonso e Milton, guardaremos, Amélia e eu, cada momento de convivência, cada chiste e cada abraço, cada delicadeza e a infinidade de sabores.


Ao Milton e sua Cláudia, nosso muito obrigado: compartilharam a própria casa de tal forma que nos sentimos à vontade, velhos conhecidos, amigos íntimos, simples assim.

A foto abaixo ilustra o clima de amizade, fruto de identificações e liberdade: nossas mãos em seus ombros obedeceram a script ditado pelo afeto:

Tainha na Telha (Mercado Central de Porto Alegre-RS)

Mais fotos e palavras belíssimas sobre nossos encontros foram postados pelo Afonso, aqui.

11 outubro, 2007

Micro-notas

Na azáfama que atormenta um congressista - não tipo daqueles de Brasília - mas tipo deste aqui que vos fala, diretamente do Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Porto Alegre - consigo um minutinho para deixar micro-notícias:

1. Consegui dormir a noite toda, de ontem pra hoje, na cama adrede preparada pelo casal Ribeiro-Antonini, num certo quarto amarelo. O segredo de uma boa noite de sono? Leia aqui.

2. O jantar que Madame Antonini preparou é qualquer coisa que somente grand-chefs conseguem produzir: legítimo risoto de camarão e uma surpreendente salada temperada com quelque chose éxotique... segredos, segredos. Se alguém souber como se deliciar e não engordar, conte-me. Ouvi dizer que o importante é 'comer sem culpa'. Tá bão...

3. O D. Afonso já contou nosso reencontro às margens plácidas do Guaíba, que não se sabe se é rio, lago, baía, enseada ou assemelhados. Tem até photographias.

4. Neste momento, Amélia faz um city-tour, enquanto o maridão assiste palestras (ou tecla estas micro-notas). Ninguém é de ferro.

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Azáfama e adrede são palavras buscadas no baú da memória para fazer jus ao linguajar pampeiro... quem for bagual que o diga.

08 outubro, 2007

Novo endereço (provisório)

Tenho o prazer em comunicar que, de ontem até quarta-feira, estaremos atendendo na Rua da Bavária, em Gramado-RS. Ressaltamos que nossa ocupação será apenas lazer: passeios, fundues, caminhadas, relax... Estaremos juntos, Amélia e eu, comemorando aniversário de casamento, namoro, etc. e tal...


De quarta a sábado, desceremos a serra e aportaremos na mui leal e tri-legal cidade de Porto Alegre. O local de nosso esconderijo só o sabe o mui leal amigo Milton Ribeiro que, juntamente com sua consorte Cláudia, nos acolherá num certo quarto amarelo... honra e distinção, meus caros!


Ontem, antes de aportarmos a Gramado, ainda tivemos o prazer de conviver com três nobres representantes da realeza gaúcha: D. Afonso, Kaya e a Condessa Clarissa.


Sorry, periferia!

03 outubro, 2007

Viagem no tempo

Minha alma de criança demonstra sua imortalidade toda vez que me deparo com alguns brinquedos. Lembram-me fantasias de outrora, quando um pedaço de madeira virara revólver ou uma latinha vazia de sardinha era a carroceria de um caminhão.
O quintal era um reino encantado, cheio de possibilidades, onde tudo poderia ser qualquer coisa, bastava imaginar, sonhar, viajar nas fantasias.
Alguns brinquedos remetiam à realidade que me atraía. Por exemplo: o ferrorama era o trem-de-ferro que apitava de madrugada, ao atravessar as brumas sob as quais a cidade dormia. Lá vai o trem para Vitória... lá vem o trem de Belo Horizonte. Meu pai trabalhava nos Correios e despachava malas, conferia fardos, às vezes até viajava (e eu com ele, algumas vezes) acompanhando o carro-correio.
Em Curitiba, ano passado, fiquei babando diante do ferrorama do Shopping Estação. Voltei no tempo e mais horas passaria ali caso o relógio fosse mais camarada. Lembrei-me da Sony N1 a tiracolo e trouxe comigo o 'trem de Curitiba'. Voltei a ser criança.




Lembrei-me deste post que escrevi em 2004:
O trem-de-ferro compõe o cenário mágico das viagens (reais e imaginárias) de grande parte da minha infância, pois era a melhor maneira de visitar tios e primos. Alguns viviam ferrovia abaixo (CVRD), em Coronel Fabriciano. Outros, ferrovia acima (EFCB), em João Monlevade. De N.Era a Belo Horizonte eram 07 horas de viagem!
Duas lembranças fortes:
Primeira: a chegada do trem na estação: "Olha o trem!", berravam todos, diante daquele monstro de ferro, apitando e silvando os freios. Correria para pegar o melhor assento: "Eu na janela, eu na janela!" O apito do chefe-da-estação anunciava a partida e lá íamos, alvoroçados, deixando para trás a plataforma apinhada, os acenos de despedida e um frio enorme na barriga: uma aventura!
Segunda: o vendedor de comidas, cambaleando com o sacolejar incessante do trem, a oferecer sanduíches de "salame" com guaraná e maçãs enroladinhas naquele papel de seda azul claro. Como cheiravam! Raramente tínhamos maçãs em casa, portanto era uma festa só.
Ah! e os biscoitos de polvilho? E o chacoalhar dos vagões? E os apitos que anunciavam ponte ou túnel?
Minha primeira grande saída de casa foi quando fui estudar no Colégio do Caraça: meu pai e eu, no trem, no tempo remoto de meus 11 anos... A cidade ficava lentamente para trás, o casario rareava e os campos se sucediam. O comboio sempre margeando o Rio Piracicaba ou outro qualquer. Os postes de telégrafo surgiam a tempo certo, com os fios fazendo uma enorme barriga, até novo poste, e outro, e mais outro, infinitamente.
Mais tarde, uma emoção estética: assisti à estréia do ballet "O último trem", com o grupo Corpo. Música de Milton Nascimento! Revivi tudo: O tac-tatac das rodas de ferro marcava as emendas dos trilhos e servia de improvisado metrônomo para canções murmuradas a sós.
Meu pai trabalhava nos Correios e, ocasionalmente, conduzia as malas num compartimento especial, chamado Carro-Correio, no qual me levava, vez por outra - eu não teria de pagar passagem! Era mister certo cuidado, entretanto: "O chefe-de-trem não pode vê-lo!". Uma aventura: eu e meu pai, meu pai e eu, contando as estações, descobrindo árvores, horizontes, rios e - sublime momento - cachoeiras! "Olha uma ali!", gritava quem via primeiro.
A volta para casa era plena de casos e, sempre, com uma preciosidade: maçãs para os meninos!

30 setembro, 2007

Churrasco de surubim ou Surubim na brasa

Aos gauchos Afonso e Milton que abraçaremos (Amélia e eu) na próxima semana, vai parecer estranho e herético o nosso almoço de hoje: churrasco de peixe! Acontece que mineiro é de inventar coisas e lousas, mania de quem vive entre montanhas. Se há iguarias tradicionais (feijão tropeiro, pão-de-queijo, canjiquinha com costelinha, frango ensopado com quiabo e angu, etc.), há sabores novos e releituras gastronômicas inusitadas. Não temos mar - eis nosso trauma! - e sonhamos com praias, bem o sei. Entretanto, os rios correm no fundo de nossos quintais, há cachoeiras logo ali, lagoas plácidas acolá: as águas que aqui marulham, não marulham como lá! Nossos bosques têm mais flores, nossos rios têm mais peixe; a comida, mais sabores!

Encerro aqui este exórdio para deixar com vocês imagens que ilustram passo-a-passo o almoço preparado pelo filho Ângelo, na tarde amena deste início de primavera:

1 - O filé de surubim, após limpo, será fatiado em pedaços de mais ou menos 4cm de espessura. O tempero é tradicional: caldo de limão, alho-e-sal (pouco sal) e pimenta-do-reino. Ficará a marinar por 1 hora, enquanto se partirão ao meio algumas batatas e cebolas, não muito grandes. Estas, regadas generosamente com azeite e salpicadas de tempero em pó, irão ao forno ou à grelha até corar. Serão o acompanhamento.


2. Após alguns minutos expostos ao calor das brasas, cobrem-se os pedaços de surubim com um molho feito de extrato-de-tomate, azeite e leite de coco. O churrasqueiro sabe que deverá virar a grelha algumas vezes, para que o peixe fique bem assado em ambos os lados. A mesa deverá estar posta, pois em 10 minutos a iguaria estará pronta e deverá ser servida quente.




4. Os filés estão assados, crocantes por fora e suculentos por dentro. O tom avermelhado é convite ao paladar. Uma despretensiosa salada de alface foi preparada pela Amélia e as batatas exalam um aroma mediterrâneo. Vamos à mesa!

5. Caberia um vinho tinto encorpado, já que o sabor é marcante. Hoje fomos de cerveja, bem gelada, como convém.




Se ficou bom? É só aparecer por aqui que a gente oferece e vocês próprios conferem.



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Mais fotos, aqui.

27 setembro, 2007

Frei Betto: - "Engana que eu gosto"



Texto de hoje do mineiro Frei Betto, publicado no Caderno Cultura do Estado de Minas, disponível apenas para quem tem assinatura. Sem pejo (e sem tempo pra elaborar um post próprio) compartilho aqui:

Engana que eu gosto

"Assim, de engano em engano, para o bem de todos e a felicidade geral da nação, transcorre a nossa história"


Ora, é evidente que contra o senador não há “provas conclusivas”, tudo não passou de gentileza do lobista de uma grande empreiteira. A contabilidade pecuária está em ordem, embora haja certa desordem na documentação pertinente.

Desde muito cedo, o cidadão brasileiro é educado na síndrome do engano, enfermidade de etiologia política cuja cura só pode ser alcançada mediante doses maciças de auto-estima e senso cívico.

Os descobrimentos da América e do Brasil foram magníficos encontros de culturas transoceânicas. O saldo de milhões de indígenas mortos é mero acaso de organismos vulneráveis em suas defesas imunológicas às gripes e resfriados que os ibéricos contraíam em contato com as frias correntes marítimas.

A casa-grande, generosa com os escravos, tratava-os como filhos, e uns tantos senhores, livres de todo preconceito, chegaram a mesclar seu sangue de branco ao prenhar negras e gerar o mestiço e este símbolo nacional chamado mulata.

Graças à benevolência da casa-grande é que a senzala, farta de carnes variadas, brindou-nos com o prato de preferência nacional: a feijoada. E que não se olvide o bom-gosto do caipira, inventor deste coquetel que, hoje, conquista o sabor mundial: a caipirinha.

A rebelião de Vila Rica não passou de uma transposição extemporânea, ao solo pátrio, das idéias iluministas em voga na Europa. O bando de intelectuais, surpreendidos em sublevação contra a Coroa, fez de um alferes boi de piranha. Tanto que outro qualificativo eles não mereceram senão o de inconfidentes, incapazes de guardar confidência, segredo. À exceção do que teve o pescoço enforcado, deduraram uns aos outros. Hoje, o evento passaria à história como Deduragem Mineira.

E a Guerra do Paraguai? Foi lá o nosso Exército pacificar aquele povo iludido pela mente insana de um caudilho raivoso disposto a defender valores anacrônicos: a soberania nacional e os direitos sociais. Tamanha a paz que os nossos militares impuseram à nação vizinha, que apenas em cemitérios se pode encontrar tanta quietude.

Em Canudos, um bando de fanáticos, liderados por um fundamentalista desmiolado, ousou contrapor-se à proclamação da República! Não tivesse aquela gente resistido à ação pacificadora do Exército, teriam todos sobrevivido e, ordeiramente, retornado ao sadio trabalho nas lavouras canavieiras.

Tantas proeminentes figuras em nossa bela história: Vargas, pai dos pobres; JK, 50 anos em 5; Jânio, o homem da vassoura; Collor, o caçador de marajás! Merece destaque a Revolução de 1964, que salvou o Brasil da ameaça comunista e imprimiu índices astronômicos ao nosso desenvolvimento. Vide a Transamazônica, a Ferrovia do Aço, o Mobral e o fim do analfabetismo! Se um bando de subversivos preferiu trocar canetas por armas, insatisfeitos com a hierarquia trasladada dos quartéis às ruas, não fizeram as Forças Armadas outra coisa senão reagir em defesa da lei e da ordem.

Assim, de engano em engano, para o bem de todos e a felicidade geral da nação, transcorre a nossa história. Ela que avança em ciclos de prosperidade, do pau-brasil ao ouro, do café à cana-de-açúcar, do minério à madeira amazônica, da soja à carne e, agora, retorna aos canaviais, de onde jorra o etanol, a bola da vez a oferecer ao mercado externo.

Sabemos todos que a verdade é inconveniente, incômoda,
constrangedora. É melhor esse jeitinho elitista, capaz de acomodar as situações mais conflitivas e adotar, em nossas escolas, a versão cordial sobre o povo brasileiro. Povo pacífico, ordeiro, leal, com exceção de uns poucos que enxergam mensalão onde houve apenas “operações não contabilizadas”. E ainda querem avacalheirar o presidente do Senado!
Engana que eu gosto!, diz a nação. Porque não há reação, não há manifestações nem mobilizações. Cadê as lideranças populares, as centrais sindicais, as pastorais proféticas? Fora um ou outro protesto ou gesto de indignação, tudo permanece como dantes no quartel de Abrantes.
Razão tinha Proust que, em Sodoma e Gomorra, escreveu: “No mundo da política as vítimas são tão covardes que não se consegue considerar os algozes maus por muito tempo.”
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[Frei Betto é escritor, autor de A mosca azul –
reflexão sobre o poder (Rocco), entre outros livros.]

18 setembro, 2007

Delícia!


Estivemos em Nova Era-MG neste final de semana.

Afinal, não poderíamos perder isso aqui.


Amélia que o diga! (foto by Cláudio Costa)

15 setembro, 2007

Pequena Homenagem a Bashô

Foto by Cláudio Costa, 2007.

Pequena Homenagem a Bashô

(Fernando Guimarães, do Porto)

Bashô - Prefiro olhar esta árvore a olhar o templo que fica no vale. Prefiro olhar esta folha a olhar a árvore. E, depois, esta gota de água à folha onde está pousada. Agora pergunto-te: serás capaz de escrever um poema acerca desta gota?

Jovem Poeta - Julgo que sim. Por isso terei que falar da folha, da árvore e do templo.

Bashô - Será preciso? Então, por que não falar também do vale onde se encontra o templo? Nesse vale corre um rio.

Jovem Poeta - E referir-me-ei a esse rio...

Bashô - Talvez seja melhor falares nos seus peixes. São prateados porque é deste modo que neles aparece a sombra. E a sombra desce porque está a anoitecer.

Jovem Poeta - A noite é semelhante às escamas do peixe. Há nelas também um pouco de luz. Os teus ensinamentos ajudam-me tanto... Julgo progredir pouco a pouco, mas seguramente.

Bashô - As escamas... Estás a pensar agora numa folha?

Jovem Poeta - Sim. As gotas de água aparecem nessa folha como se escamas fossem.

Bashô - Mas ainda não disseste o que é preciso dizer acerca da luz e da noite. E de outras coisas. O vulto de alguém que, antes de principiar a madrugada, se encaminha para pescar nesse rio e leva consigo uma lanterna para atrair os peixes. A mulher que, em casa, lhe prepara a primeira refeição. O ruído um pouco abafado das chaleiras. O modo como um e outro se despediram...

Jovem Poeta - Queres com isso dizer que no poema muitas coisas devem ficar devidamente expressas, que ele deve referir-se a tudo?

Bashô - Não é bem isso. O que quero dizer é o contrário. Nele, tudo pode ser dito, desde que se fale apenas de uma gota d'água.

ooo000)))(((000ooo

(Fernando Guimarães, in "Limites para uma Árvore" - Poesia Afrontamento 2000)

08 setembro, 2007

Maria Aparecida


Nasceu minha mãe no dia 09/09 de um ano terminado em 9. Após 9 meses, cheguei a este mundo, em outro ano com final 9, quando minha mãe tinha 19 anos. Ela teve 9 filhos.

Mais uma vez, o número 09/09 se repete no calendário. Seria uma data qualquer, um domingo qualquer.

Domingo, entretanto, é o aniversário de minha mãe Aparecida, a moça bonita aí da foto.

O bíblico Salomão, há séculos, perguntou: "A mulher forte, quem a encontrará?"

Pois respondo: minha mãe é uma mulher forte, amorosíssima e cuidadosa com os filhos. Brinca, trabalha, dança (mesmo!), verifica, afaga, previne, remedia, aconselha, manda, pede, ajuda, reprime, resmunga, chora, sorri, tudo olha, faz-que-não-vê, intui, deduz, adivinha ("o mindinho me contou"), controla, apoia, socorre, reza, reza muito, tem fé e nos ensinou o bom caminho.

Faz aniversário há anos e continua jovem ao lado do namorado Soié.

O presente? Ah! quem ganha é a gente mesmo: ter você por perto, Mamãe, eis a dádiva que Deus nos deu.

Sua bênção para o filho, Cláudio.

03 setembro, 2007

Sintomas

A experiência de trabalhar com crianças 'em sofrimento mental' é algo angustiante e exige de nós mais do que estudo e conhecimento. Há que verificar bem o sentido dos sintomas, para que servem e qual sua função na estruturação do sujeito.
Se, por um lado, a família pressiona pela 'cura' rápida - o que é compreensível -, nem sempre devemos ser tão afobados na supressão dos comportamentos ditos sintomáticos.
O termo 'sintoma' vem do grego, justaposição do prefixo 'sin' (= sentido de união) com o substantivo 'tómos' (= pedaço). Sintoma, pois, é uma tentativa de 'juntar os pedaços', 'juntar os cacos', montar um quebra-cabeças no qual podem estar faltando peças ou que necessita de mais tempo para se organizar.
Uma interrogação importante: por que o 'estilhaçamento'? Por que 'as peças não se encaixam'?
É tentador pensar apenas em alterações neurofisiológicas, em neurotransmissores descontrolados, em 'problema dos nervos'... as coisas, porém, não se resumem a isso, embora não se deva descartar hipótese alguma.
Atendi, outro dia, uma criança que chega com diagnóstico de 'hiperatividade' (TDAH), transtorno que afeta a média de 4% da população infantil, no Brasil e no mundo. Há critérios bem estabelecidos, etc., mas 'cada criança é uma criança'. No caso ao qual me refiro, há alguns meses houve piora sensível dos sintomas-tipo, com aumento de agressividade e inquietação. Outros comportamentos inadequados se agregaram, como regressão (fala como bebê, quer dormir na cama dos pais, não consegue tomar banho sem ajuda do adulto, alterna bruscamente o humor).
A história desse pequeno cliente de 9 anos evolui junto à derrocada do relacionamento dos pais. As brigas sempre foram constantes, mas 'o caldo entornou' com a descoberta de que a mãe tinha alguns casos extra-conjugais (no plural, mesmo). A criança participou do inferno-em-domicílio, tomava partido de um e de outra e acabou ficando com a mãe nos primeiros meses pós-separação. Há dois meses, coincidindo com a piora dos sintomas, foi morar com o pai, que entrou na Justiça pedindo sua guarda.
Algo que estava trincado acaba por se partir dentro do psiquismo do meu pequeno cliente: muitos cacos. Num esforço de recomposição, sin-tomas aparecem e não será suficiente um remédio a colar os pedaços.
Há que 'escutar' o pedido de socorro e oferecer possibilidades de elaboração do luto, do medo da perda, do ódio e do desespero, da descrença no amor e da infinita necessidade de amparo, de carinho e de amor.
Em troca, tem-se que aprender a falar com ela com as palavras certas, cuidando para que nada se mascare, não haja mentiras. A palavra verdadeira é tudo de que a criança precisa.
É mister, ainda, escutar os pais, cada qual com suas razões e desrazões, aplacar a hostilidade na medida do possível, fazê-los compreender que não deixam de ser pais, apenas não são mais marido e mulher.
Ah, quanto trabalho!
Por isso, às vezes, este blog fica tanto tempo parado, porém visitado pelos fiéis leitores que deixam mensagens tão carinhosas e palavras de estímulo.
O silêncio pode ser um sintoma.

26 agosto, 2007

ÁGAPE

Quando amigos se reúnem em torno de uma mesa para saborear iguarias comuns ou sofisticadas, a isso chamamos de ágape. A palavra deriva diretamente do grego e significa "amizade, amor, afeição". No princípio do cristianismo, ricos e pobres se confraternizavam em torno da eucaristia, dividiam o pão e bebiam do vinho transmutados em corpo de Cristo. O beijo que simbolizava a união de todos foi proibido, provavelmente por suscitar pensamentos libidinosos (mas isto é outra história).

Pois foi um verdadeiro ágape a festa promovida pelos 'Famosos', ou Famouxxos, como se denomina a turma que se formou desde os tempos do ensino médio e se mantém unida até hoje, no limiar do término do curso universitário. Leonardo, nosso filho, é um dos 'famouxxos', privilegiado pela convivência alegre, sadia e fiel.

Pois essa turminha promoveu, ontem, o II Encontro para os Pais, vejam só! Fomos convocados para compartilhar a alegria e a amizade, numa demonstração que juventude e maturidade podem muito bem se combinar. Namoradas, irmãs e irmãos também fizeram parte da festa.

Além do churrasco, bebidas, almoço e muita música, os 'meninos' promoveram o concurso "Especialidade da Família", com regulamento e tudo, porém brincadeira pura. Os pais poderiam levar uma iguaria (doce ou salgada) para ser degustada. Numa votação secreta se escolheram os vencedores da duas categorias. Com muito orgulho, anuncio que Amélia ganhou o 1º lugar dentre as sobremesas:



Ao final do dia, outro ágape: o Idelber nos convidara para sua despedida, pois que amanhã retorna a New Orleans, onde é professor da Tulane University. O local foi bem escolhido: Armazém Mineiro, ou Emporium, casa mineira no alto da Avenida Afonso Pena. Não fiquei até o sol raiar, mas o abraço amigo fez o sábado terminar como começou: ágape gastronômico!