A repórter Solange Bastos relatou-me a tragédia ocorrida às 15,30h de quinta (1° de setembro): um jovem adulto, 28 anos, pedreiro, ligou para emissora mais ouvida em MG:
- Vocês se lembram do caso de uma pessoa que matou mulher e filhos? Pois é, fiz a mesma coisa.
O homem acabara de assassinar a própria esposa e o filho de 7 meses. Detalhou os fatos: ele e a mulher se davam muito bem. Durante um jogo sexual, ela lhe pediu para que a amarrasse na cama. Empolgado, asfixiou-a! A seguir, deu banho no filho e o aprontou, enquanto resolvia para quem o entregaria. Mas concluiu que "não haveria sentido o menino viver sem a mãe" e o matou... Só então telefonou para a rádio.
Antes de se entregar à Polícia, buscou no colégio os filhos que teve com outras companheiras, levou-os para tomar sorvete e os entregou às respectivas mães...
O episósio é chocante e a repórter deseja opinião minha, do ponto de vista psiquiátrico e psicanalítico: Trata-se de um caso de "psicopatia"? Quer saber se o homem é louco, se jogos sexuais podem desencadear crimes, se a causa do crime estaria no desemprego, ou se "todos nós somos assassinos em potencial"(sic)!
Evidentemente não é possível diagnóstico psiquiátrico e psicanalítico sem que se entreviste o sujeito, sem que tenhamos seu relato, sua história de vida, etc. Mas casos assim sempre atiçam a curiosidade e é normal que busquemos explicações do tipo: "esse cara é louco". Com respostas simplistas, afastamos de nós qualquer semelhança com o outro, dito anormal, psicopata, doido... ou seja: eu sou normal, loucos são os outros! Portanto, isso nunca acontecerá comigo. Cruz credo, t'esconjuro, sai pra lá, comigo não!!!
Inúmeros estudos, porém, demonstram que os portadores de doença mental - ou "loucos de toda espécie", no ultrapassado jargão jurídico - não são as pessoas mais violentas. Ou seja, nós - os normais (?) - é que engordamos as estatísticas da criminalidade.
"A psicopatologia, nesses últimos 10 anos, adquiriu conhecimentos que correspondem a 90% do que havia sido conhecido em toda história da humanidade em termos de neurofisiologia. Isso, evidentemente, repercute num substancial incremento sobre o entendimento acerca da pessoa humana e de seu comportamento.
A despeito desse conhecimento que explodiu na última década, a maioria das pesquisas ou não encontrou uma associação entre doença mental e o risco de cometer crimes de violência, ou encontrou apenas uma discreta associação, estatisticamente não significativa." [Ballone]
A primeira pergunta que surge é: trata-se de um psicopata?
O conceito de "psicopatia" tem mudado ao longo dos avanços da Psiquiatria. Resumidamente, podemos definir o psicopata como uma pessoa cujo tipo de conduta chama fortemente a atenção e que não pode ser classificado nem de louco nem de débil: está num campo intermediário. Indivíduos assim se distinguem da maioria da população em termos de comportamento, conduta moral e ética. Diz-se que têm "personalidade psicopática" (PP). Atualmente, a Classificação Internacional de Doenças-10ª revisão (CID-10) os classifica como portadores de Transtorno de Pernsonalidade Anti-social.
São incapazes de se integrar a qualquer grupo, devido ao seu egoísmo absoluto e a não aceitarem qualquer tipo de regras. Só o que eles querem é o que interessa. No início, eles até fazem amizades com facilidade mas, diante dos primeiros conflitos, a sua amoralidade aparece em todo o seu potencial. Terminam por ser rejeitados pelos grupos em pouco tempo. São, por isso, em geral indivíduos solitários, que migram de grupo em grupo até que não restem mais grupos para os aceitarem".
[Se você quiser conhecer os vários tipos de psicopatas, entre neste site aqui, do psiquiatra Geraldo Ballone. Excelente!!!]
No relato jornalístico de ontem, diz-se que os vizinhos, amigos e parentes sempre consideraram o criminoso como pessoa normal. Teve filhos com outras mulheres e não os abandonou: dava pensão, buscava na escola, pai exemplar. Não tem o perfil de um psicopata. A não ser que fosse um fingidor, mestre da dissimulação, podemos acreditar nisso: um sujeito comum e normal que se transforma num "monstro" aos olhos da sociedade - e, talvez, de si mesmo.
Há casos em que o assassino apresenta explicações delirantes, tipo: "fiz isso porque Deus mandou"; "escutei uma voz dentro de mim ordenando que matasse". Outras vezes, constata-se que se tratava de uma intoxicação por alguma droga. No caso em questão, nada disso. Como explicar?
Na Psicanálise, tal fato se denomina "passagem ao ato" durante um surto psicótico, no qual o sujeito é arrebatado para fora da realidade, invadido pelo Real (Lacan: tudo aquilo que é sem ordem, sem lei, está dentro de nós mas é indescritível, inenarrável).
Trata-se de uma teoria complexa, que podemos simplificar mais ou menos assim: todos nós temos fantasias inconscientes indescritíveis, irredutíveis à plena palavra. A maneira saudável de lidar com isso se dá via linguagem simbólica, mecanismo incompleto porém aceitável. A cultura é fruto desta operação, permitindo ao bicho-homem que supere a ordem do "natural" (animal), da pura necessidade instintiva e alcance a ordem simbólica, por cujo intermédio pode falar de seus desejos, seus fantasmas, sua total impossibilidade de lidar com o indizível (por exemplo, o terror da morte). Por isso falamos: aceitando nossa incompletude e a impossibilidade de realização plena de nossas pulsões, submetemo-nos a uma lei inaugural (a castração freudiana ou a "Lei-do-Pai", na famosa expressão lacaniana).
A passagem-ao-ato, a irrefreável atuação concreta - quando tudo poderia se passar no plano simbólico, fantasioso - é um dos momentos em que o sujeito escapa à simbolização, é dominado pelo Real. Por isso se diz que, na psicose, falta a lei-do-Pai. O Nome-do-Pai é estruturador da subjetividade. Quando falta, não há âncora e o indivíduo se perde no Real.
A consequência, pois, da ausência do simbólico é a passagem ao ato, através do que o indivíduo, por um momento perde/busca a própria identidade. O crime horrendo desencadeia uma angústia insuportável, pois suas motivações são incompreensíveis tanto para a sociedade quanto para aquele que o cometeu. Em muitos casos, é seguido de suicídio, não apenas pelo remorso, mas pela angústia do desconhecimento de si:
- Eu fiz isso? Quem, em mim, cometeu esse desatino?
Na sua tese de medicina, “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”, de 1932, Lacan descreve o caso de uma mulher, que ele chamou Aimée (em francês = Amada). Aimée apaixonou-se por uma atriz, uma vedete. Perseguiu-a por todos os lugares até que, na saída de um espetáculo, a esfaqueou. Lacan explica: É assim uma ilustração clínica das potencialidades do amor, quando esse é levado ao extremo: a facada dada por Aimée na vedete que, a título de ideal, absorvia seu investimento libidinal. A fotografia no jornal, nos dias seguintes à sua prisão, devolveu-lhe a calma.
Assim, o assassino mineiro da esposa e do filho de 7 meses, desesperado, almeja o "re-conhecimento" e telefona imediatamente à Rádio Itatiaia, como se bradasse:
- Eu existo, eu sou eu, tanto que matei. Eis-me aqui. Olhem para mim. Eu existo!
Essa teoria - aqui resumida e simplificada, com perda de elementos e de compreensibilidade, bem o sei - essa teoria, repito, poderá explicar crimes tão absurdos?
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1) Uxoricida: aquele que mata a própria esposa. Do latim: uxor-is (esposa) + caedere (matar, deitar abaixo, cortar).
2) O "Real":
O registro psíquico do real não deve ser confundido com a noção corrente de realidade. Para Lacan, o real é aquilo que sobra como resto do imaginário e que o simbólico é incapaz de capturar. O real é o impossível, aquilo que não pode ser simbolizado e que permanece impenetrável ao sujeito do desejo para quem a realidade tem uma natureza fantasmática. Diante do real, o imaginário tergiversa e o simbólico tropeça. Real é aquilo que falta na ordem simbólica, os restos que não podem ser eliminados em toda articulação do significante, aquilo que só pode ser aproximado, jamais capturado.
Lacan veio reconhecer que, para o ser falante, não há adequação na relação entre o objeto e sua imagem, entre as partes do corpo e a imagem que se tem dele. Como a nossa imaginação desordenada pode preencher sua função? Como o imaginário e o real podem ser articulados na economia psíquica do sujeito? Esta polaridade, esta fratura entre o imaginário e o real, entre o simbólico e o real corresponde exatamente à categoria da secundidade. O real é sempre bruto e abrupto. É causação não governada pela lei do conceito. O real resiste ao simbólico porque ele insiste, en souffrance, de tocaia para tomar de assalto o simbólico. [Santaella Braga]
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