Há os que se sentem plenamente imbuídos da idéia do sagrado e valorizam os rituais religiosos com a celebração alegre do nascimento do 'menino-deus': preparam-se no tempo do advento e comemoram a epifania como o acontecimento mais importante para o gênero humano. Trata-se de uma experiência mítica e místico-religiosa, que os afeta em sua singularidade e os faze se sentir partícipes de um projeto de salvação universal. Ser religioso importa num conjunto de crenças e, para alguns, uma fé convicta sustenta sua posição perante o mundo. Se, de um lado, a fé e o pertencimento ao grupo garantem a segurança do "um" pela identificação ao "outro", contudo não é suficiente: de que vale a fé sem as obras? O esgarçamento dessa dimensão ao longo dos séculos e sua incorporação pela cultura judaico-cristã-ocidental mitigaram as exigências éticas e reduziram a rituais o comprometimento exigido nos primórdios.
Inda mais, o avanço do capitalismo e seu mais perverso corolário, "não existem pessoas, o que existe é O Consumidor", descambaram na transformação das festividades natalinas em orgia consumista, cujos templos são os palácios dos shoppings ou as tendas abarrotadas de ofertas. A cada ano, o onipresente departamento de marketing inventa o 'produto dos sonhos' e nosso desejo é capturado pela promessa de felicidade infinita, aqui e agora. Basta comprar o celular G4, a tv de plasma, o laptop de mil recursos, o automóvel definitivo.
Não se pode negar que existam ainda muitas e muitas pessoas dotadas daquele 'sentimento oceânico' do qual se ocupou Freud: trata-se do anseio por um pertencimento ao mundo, desejo esse em que o medo da perda de amor se situa na dianteira do sentimento de autopreservação e segurança a partir da identificação com o universo em que o indíviduo vive. Para Romain Rolland, o pensador francês que criou este termo, o sentimento oceânico seria o fundamento do sentimento religioso. Creio que o perído natalino desperta uma certo olhar compassivo para o semelhante, servindo de alívio para a culpa que alguns carregam pela indiferença à fome, à miséria, à exclusão. Distribuem-se presentes, fazem-se campanhas de solidariedade, distribuem-se migalhas aqui e ali. O mundo parece mais cor-de-rosa, ainda há esperança quanto ao futuro da humanidade, o ser humano pode até ser bom. Mas a vida continua, cada qual mergulha na azáfama cotidiana em busca de acumular bens, riquezas e segurança, enquanto os excluídos aguardam o próximo Natal, que será usufruído apenas pelos sobreviventes. E la nave va.
Deparamo-nos com muitos que dizem detestar o Natal. Se uns criticam o consumismo, outros reclamam do trânsito, muitos se sentem angustiados com os gastos para presentear por pura obrigação. Mas há os que se sentem tristes, verdadeiramente deprimidos: o Natal é a pior época do ano, confessam. Às vezes dizem: 'não sei o porquê disso'. Bastam alguns minutos de atenção e nossos ouvidos se enchem de lembranças amargas, ressentimentos nunca resolvidos, culpa, raiva, solidão. Podem acusar a sociedade de ser hipócrita e não há como tirar-lhes a razão. Mas não se trata de ter razão, pelo menos na clínica.
É tempo de reencontros, reaproximações, visitas à família distante, encontro com vizinhos, abraços na repartição, festinhas de amigo-oculto (sempre chatas e burocráticas!)...
Como enfrentar tantas contradições? Mergulhar de cabeça nas compras? Comer, comer e comer? Isolar-se de tudo e de todos? Rezar e orar? Cada um encontrará seu jeito próprio, pois as receitas em oferta pela mídia nem sempre são fáceis de seguir.
Quanto a nós, vivenciamos um pouco de tudo isso. Reencontramos os amigos, desejamo-lhes sinceramente um Feliz Natal (cada qual sabe como é ser feliz - não?), decoramos a casa, repartimos uns poucos presentes. Evitamos o consumismo e o desperdício. E o aniversariante do dia, aquele que deu origem a tudo isso, este tem um lugar simbólico na simplicidade de um presépio artesanal. Amélia, Ângelo e Renatinha representaram na estante uma pequena vila do interior. Os caminhos são tortuosos, como a vida. Mas as cores são vivas e, um pouco afastado, lá está ele, o Menino:
Presépio feito por Amélia, Ângelo e Renatinha,
com casinhas-de-barro (artesã: Jovita, do vale do Jequitinhonha-MG) Foto by Cláudio Costa.
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