Dentre as muitas vicissitudes por que passam os viajantes aéreos, os atrasos nos vôos talvez sejam os menos trágicos.
Foi um desses atrasos de Brasília para BH que me fez chegar ao Aeroporto de Confins (oficialmente "Tancredo Neves) às 23,50h de uma sexta-feira, 13.
Para vencer os 40km até o centro da cidade, tomei um taxi. Ao me acomodar no banco de trás, senti logo um odor muito forte de incenso, ao mesmo tempo que vi o motorista fazer o sinal-da-cruz. Beijou o crucifixo pendurado no retrovisor e, dando partida, murmurou:
- Vade Retro, Satanas.
- O que disse?
Imagino que não queria que o tivesse escutado, pois respondeu, defensivamente:
- Nada não, senhor!
Insisti, até que começou a contar:
- Peguei essa mania há muito tempo, desde quando nem existia o aeroporto tão distante. É uma formula que utilizo para espantar os fantasmas noturnos.
- Por acaso tenho cara de fantasma?
- Não, é claro que não, embora a gente nunca possa ter certeza. O senhor me desculpe, mas comigo aconteceram algumas coisas muito estranhas e não posso deixar de me prevenir. Vou explicar: da primeira vez, eu trabalhava com um Opala Chevrolet. Meu pai ficava com o carro durante o dia e eu, por ser mais novo, pegava à noite. Numa sexta-feira, noite fria de junho, descia a Avenida Afonso Pena bem devagar, procurando passageiros. Naquela época, havia muitas árvores, a iluminação era fraca e os ônibus demoravam a passar. Pois foi exatamente num ponto, pertinho da Praça Tiradentes, que uma mulher acenou. Era alta, loura, usava sapatos altos e estava vestida como se fosse para uma festa. Achei estranho, pois as mulheres daquele tipo não andavam sozinhas, só as putas, o senhor entende. Mas não tinha cara de puta, de jeito nenhum. Abri-lhe a porta. Ela entrou e, com ela, um perfume que nunca havia sentido: - Leve-me à Rua Mariana, no Carlos Prates. "Deve ser uma delas", pensei, pois naquela região havia umas casas de mulheres suspeitas, ou da vida, como diziam. Não puxei assunto, nem ela falou nada. Apenas aquele perfume do qual nunca mais esqueci. As tais casas ficavam no início da Rua Mariana, mas ela pediu para tocar em frente. Fui subindo devagar, esperando que me mandasse parar. Até que chegamos, sabe onde? Em frente ao Cemitério do Bonfim. "Pare aqui", disse, com voz ríspida. Olhei o taxímetro e dei o preço. Ainda era em cruzeiros, o senhor se lembra? Pois a dona me deu uma nota de cinco mil, para pagar uma corrida de dois e quatrocentos. Abri minha carteira para pegar o troco e, quando me virei, o banco de trás estava vazio! "Cadê a mulher?", perguntei a mim mesmo. Estremeci, pois o perfume foi substituído por um cheiro forte de enxofre. Olhei para fora e vi o portão do Bonfim fechando-se lentamente, mas não vi ninguém, nenhuma alma. Deu-me uma tremedeira danada... Gritei: "Valha-me São Cristóvão!" É o padroeiro dos motoristas, sabia? Acelerei o carro, nem olhei prá trás. Desde aquele dia, sempre faço minhas orações. Depois que aprendi a fórmula do exorcismo com um padre, então fiquei mais seguro. Por isso, o senhor me desculpe, não tem nada a ver com o senhor, por isso, toda vez que entra qualquer passageiro no meu taxi, já me previno: "Vade retro, Satanas".
O senhor vai prá onde, mesmo?
Com um sorriso diabólico, respondo:
- Rua Mariana, por favor...
[A lenda da Loura do Bonfim alimenta o imaginário belorizontino desde a década de 50. Já virou filme. Eu aumento, mas não invento.]
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