- Ah! doutor, preciso continuar a falar daquele assunto da semana passada...
- Sei.
- O senhor se lembra?
- Você quer que eu nomeie.
- Não!
- Não?
- Bem... aquele assunto, doutor, aqueles pesadelos que tenho tido, de meu banco falir. (Dá três toques no assoalho. Deitado no divã, era a peça de madeira mais próxima).
- Sonhos recorrentes.
- E lucros cessantes.
- Cessantes... cessantes...
- Não repete mais essa palavra, doutor. Dá azar, atrai desgraça. O senhor acredita em força do pensamento?
- Força ou fraqueza?
- Pegou pesado, hein? Mas tenho meus motivos. Sei que não é sua área, o senhor é do mundo abstrato, mexe com essas coisas da alma, mas eu é que sei o que é que move o mundo: o dinheiro!
- In gold you trust.
- In God, doutor, "in God we trust". Está lá no Dólar. Aliás, no Real também: "Deus seja louvado". Banqueiro não é ateu, mas também não é bobo. Tenho de me adiantar aos acontecimentos, ficar atento, senão o meu dinheiro vai pro ralo.
- Esgoto?
- Não! Esgoto é pra cocô, essas coisas. Ralo mesmo, igual à água de uma banheira. Se estiver mal tampada, devagarinho a água se esvai, o nível se abaixa, até secar. É isso que pode acontecer com meus lucros. Foi o que sonhei na noite passada.
- Conta aí.
- Só me lembro de um pedaço: era mesmo uma banheira cheia de notas e moedas. Todo dia eu conferia, olhava o nível. Até pensei em fazer como o Tio Patinhas, que se banhava nas moedas... leitura de meus tempos de menino, hoje não tenho mais tempo pra isso... não, não mergulhei no dinheiro, não! Mas o Tio Patinhas é que devia ser feliz... De repente, tudo aquilo se transformou em líquido, uma água viscosa e verde, doutor, esquisito demais. No sonho eu esfregava os olhos e me perguntava: será que estou sonhando? Engraçado isso, eu sonhar dentro de um sonho. Isso pode acontecer? Muito esquisito... Mas o problema é que não estava sonhando não, era verdade. Quer dizer, estava e não estava sonhando, o senhor entende? Entende?
- (silêncio)
- Detesto quando o senhor dá uma de psicanalista ortodoxo!
- (silêncio)
- Deixa prá lá, vou contar o resto: aquela água verde-escura-gosmenta cheirava mal. Eu ficava na dúvida se devia destampar a banheira ou não. Juro que pensei: melhor morrer. Depois me lembrei da frase lá no Dólar e rezei: In God we trust! Nessas horas a fé aumenta, acredita? Mas acho que Ele não sabe inglês, ou fingiu não escutar. Repeti como uma ladainha o versículo escríto no Real: Deus seja louvado, Deus seja louvado. Não adiantou. Aí, já quase desafalecido pelo cheiro horrível, enfiei a mão naquela merda - desculpe o palavrão, doutor, mas o senhor mesmo me estimula a soltar o verbo, falar o que vem na cabeça, não é? Então, enfiei a mão naquela merda e destampei a banheira. Suava frio, tremia, mas era o jeito. Queria acordar e não conseguia, um pesadelo mesmo!
- E aí? Você associa este sonho com alguma coisa que está acontecendo? Algum sentimento? Alguma experiência pessoal? O que significaria este sonho?
- Não sei...
- (silêncio)
- Ah! lembrei! Teve reunião da Diretoria Financeira. Os analistas financeiros perceberam que nossos lucros estão diminuindo. Quer dizer, poderão diminuir, pois nos últimos anos a gente só tem batido recordes de lucro. Acontece que essa política de diminuir a taxa Selic pode fazer o povo investir mais na Poupança que nos Fundos de Investimento, o que vai levar pro ralo os nossos lucros... Uma hecatombe!
- Hecatombe...
- O senhor sabia que a Poupança já tá valendo a pena? Antes era pra enganar o pobre, agora já está ficando interessante... Tenho de achar uma solução pra isso.
- Hmmm
- Ah! vou parar por aqui, tá bom? Tenho uma reunião agora à tarde. Semana que vem eu volto.
- Estarei aguardando.
Dia seguinte, nos jornais:
Instituições temem que queda de juros leve aplicação mais popular do país a tirar depósitos de fundos de investimentos
Os bancos querem que o governo mude o sistema de remuneração da poupança. Eles temem que, com a queda progressiva da taxa básica de juros (Selic), a remuneração do investimento mais popular do país, com cerca de 70 milhões de aplicadores, fique cada vez mais próxima da dos fundos de investimento, tornando-se uma ameaça para essas aplicações, que oferecem mais lucros para o sistema financeiro. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) apresentou ao governo uma proposta para mudar o cálculo da rentabilidade da poupança, de forma que a Taxa Referencial (TR), usada na correção mensal, acompanhe a queda da Selic. Hoje, a caderneta tem rendimento de 6% ao ano e correção de 2,5% ao ano da TR, em média. Como a TR é baseada no rendimento de títulos bancários (CDBs e RDBs), mesmo que a Selic caia, o ganho não é tão afetado.
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