19 maio, 2007

Matadouro municipal

Tom Jobim era um admirador dos urubus. É o que João Paulo afirma em sua crônica de hoje, no Caderno Pensar, do EM.

Muito antes da disseminação do pensamento ecológico entre nós, Tom Jobim soube ver beleza e sabedoria naquela ave de rapina, causadora de repulsa e de "cruz-credo" pela lembrança da morte. Os urubus aproveitam as correntes térmicas e fazem vôos elegantes, sobranceiro entre as nuvens, sobrepujando montanhas, matas e casas.

O tema lembrou-me a infância, povoada de urubus.

Explico:

Minha terra natal (Nova Era-MG), até hoje preguiçosamente debruçada sobre as curvas do rio Piracicaba, tinha um matadouro municipal bem na região central. Fora construído, é provável, no final do século XIX, bem próximo à ponte que seria inaugurada por Getúlio Vargas, anos depois.

O local se tornou passagem obrigatória para quem quisesse atravessar o rio, buscando o bairro mais novo, chamado, inicialmente, de bairro da "Rua Nova".

Ali, bem à entrada da ponte, os magarefes matavam e esfolavam as reses, à vista de todos, num espetáculo tão macabro quanto banalizado pela frequência diária com que se oferecia aos olhos e ouvidos dos passantes: olhos que se arregalavam diante da decidida paulada perpetrada na fronte do animal e da subsequente e certeira punhalada que lhe seccionava a medula, bem no meio da nuca; ouvidos que captavam os estrebuchares e mugidos medonhos, pavor e lamento de que não me esqueço.

Pequeno e curioso, eventualmente pedia ao meu avô Ilidinho que me levasse a passear na beira do rio. Às vezes, coincidiam passeio e espetáculo mórbido. De olhos estatelados e ouvidos sensíveis fui-me acostumando àquela cena. Acompanhava cada momento, desde a chegada do boi, os laços que o puxavam para o tronco central onde, amarrado, recebia a sentença. Não me lembro de maiores escrúpulos ou lembranças aterrorizantes. Afinal, era natural que se matasse para comer. Pelo menos foi assim que aprendi.

Uma imagem, porém, impressionava-me: aos montes, fazendo de poleiro as cercas, os arbustos e os arcos da ponte, os urubus esperavam. Pacientemente, desde horas antes, lá estavam os bichos negros, de asas abertas para "quentar sol" nas manhãs de inverno, aguardavam o banquete recém preparado.
De repente, como que tangidos por uma orquestra bem compassada, voavam direto à carniça e ao sangue que escorria em direção ao rio.
Pinicavam os ossos até não restar fiapo de músculo. Saciavam a fome e limpavam o mundo. Não restava podridão e a cidade continuava a respirar em paz. Mais tarde, com as termas que subiam do fundo do vale, faziam geometrias harmônicas contra o azul do céu.

O ciclo da natureza se completava e o menino, curioso, aprendia que a vida é mesmo assim.

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