Os padres que dirigiam o antigo Colégio do Caraça e lá ministravam aulas eram "vicentinos", religosos da congregação fundada por São Vicente de Paulo, cuja sede fica em Paris, à rua Saint Lazare. Por isso, são denominados 'lazaristas'.
Assim, o sistema de ensino e toda a disciplina foram adaptados dos costumes europeus e, ainda por cima, obedeciam aos rigores das 'regras' monásticas: acordávamos às 5,25h da manhã, mesmo no mais rigoroso inverno, no alto da Serra do Caraça. Aos sábados, domingos e feriados, eram condescendentes e dormíamos até mais tarde: 5,55h! Isso mesmo, ansiosamente esperávamos o bendito 'descanso': nunca trinta minutos fizeram tanta diferença. Após a missa cotidiana, seguia-se o café-da-manhã, composto de pão, café-com-leite e mingau-de-fubá. Aos domingos, um luxo: tínhamos manteiga. Aprendíamos a frugalidade monástica, por bem ou por mal. Quem não se adaptasse, que descesse a serra e voltasse 'para o mundo, lá fóra'.
O currículo era muito apertado, com aulas de Português, Literatura, Latim, Francês, Inglês, Grego, Ciências, Matemática e Religião. Esporte era obrigatório, assim como o banho frio.
Até hoje louvo a organização: cada aula durava 45 minutos, precedida de igual período para prepará-la. Todos os alunos tinham de ficar em suas carteiras, num enorme salão, a estudar a matéria específica da aula que viria. Silêncio absoluto. O padre disciplinário, ocasionalmente, percorria os corredores entre uma carteira e outra, conferindo se realmente o aluno se dedicava ao estudo determinado. Às vezes, é claro, pegava alguém a ler uma revista, um livro de contos, uma carta recebida da famíia. Era repreendido à vista de todos, um vexame.
Por um tempo, eu ocupava a última fileira do salão, logo à entrada da porta, nos fundos. Assim, quando o padre disciplinário aparecia, ninguém percebia. Chegava de mansinho e observava os oitenta jovens debruçados sobre os livros. Calmamente conferia um a um e retornava a seu gabinete.
Certo dia, no primeiro horário da manhã, pus-me a ler O Cão de Baskerviles de Sir Arthur Conan Doyle, aventura de Sherlock Holmes e seu amigo Dr. Watson. O suspense era enorme e me desligara completamente do mundo, concentrado no fog londrino e na trama policial.
Súbito, com o canto dos olhos, percebo algo a balançar suavemente um pouco atrás de mim e logo me convenci de que era a borda da batina do disciplinário. Fora descoberto! O desfecho era previsível. Em voz alta, o padre exclamaria: - Muito bem, "senhor" Cláudio, os problemas de geometria, hoje, serão resolvidos pelo detetive Sherlock? Todos os colegas se voltariam para mim e aguardariam o castigo: - Hoje você ficará sem a sobremesa e não poderá brincar durante o recreio após o almoço. Era a senha para uma gargalhada geral.
O que fazer? Se eu escondesse o livro, seria tachado de hipócrita dissimulador. Terrível. Se não o fizesse, então seria descarado, desafiador, impertinente e sem-vergonha. Terrível, também. Minha imaginação trabalhou a todo vapor e inventei uma esperança: quem sabe o padre não percebera meu deslize, estaria olhando lá para frente e nem se dera conta de minha falta? Alívio!
Fingi que nada me perturbava e debrucei-me mais um pouco para tentar encobrir a prova de meu crime. É claro que não conseguia ler e um suor frio escorregou fronte abaixo, coração disparado e respiração suspensa. Com o canto dos olhos, contudo, ainda percebia o vulto a balançar logo ali atrás, um pouco à minha esquerda. O danado do padre não saíria dali nunca mais?
Resolvi enfrentar o inevitável. Arranquei do medo e da vergonha um resto de coragem: confessaria meu crime e acataria o castigo. Não seria a primeira vez. Voltei-me resoluto e já enunciava um "desculpe-me, sr. padre" quando descobri, aliviadíssimo, a origem daquela sombra balançante: era a ponta de meu cachecol, pendurado no encosto da cadeira, que oscilava ao sabor da brisa matinal. Não havia padre nenhum e, portanto, nada de castigo. O mundo continuava a girar, o silêncio imperava e eu só escutava o bater assustado de meu coração. Joguei Conan Doyle para a gaveta da estante e ri, ri muito de mim mesmo.
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Ao lado, o que restou após o incêncio que destruiu parte do Colégio, em 1968. O salão de estudos ficava no segundo andar, acima dos arcos. Atualmente, funciona, aí, o museu do Caraça.
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Caraça-MG - Photo by Ana Letícia (Art director: Cláudio Costa)
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