03 julho, 2007

Ocultação de cadáver

Quem conta um conto aumenta um ponto, reza o ditado ao qual recorro para me eximir de quaisquer responsabilidades pelo que vem a seguir.
Dr. Maciel é legista da Delegacia Regional de Segurança Pública numa grande cidade do interior de Minas, onde cumpre sua missão de emitir laudos cadavéricos, explicar causa-mortis, avaliar as lesões corporais, sua gravidade e suas sequelas, definir a consumação de estupros, descobrir tóxicos nos fluidos corporais, etc. Ao legista chega de tudo.
Num dos últimos jornais da Associação Médica de Minas Gerais, Dr. Maciel conta um episódio digno de ser aqui compartilhado.

Aconteceu o seguinte: chegou ao Instituto Médico Legal um tal sr. Winter, tomado de ansiedade, tão apressado que quase tropeçou nos degraus da portaria. Carregava um saco plástico, desses de supermercado. Seu rosto exprimia nojo e sua mão direita, guiada por um braço mais cabeludo do que o do Toni Ramos, mantinha o fardo o mais longe possível de si. Foi direto à recepção:

- Onde eu entrego este material?

- Que material, senhor?

- Isto aqui que encontrei no cemitério do distrito de Vila São Roque, aqui perto. Foi a polícia que mandou.

- Mas o que é isso?

- Como vou saber? Deve pesar uns 2 quilos, é meio mole e já está fedendo. Levei ao posto da Polícia Militar mas eles nem quiseram abrir e me mandaram trazer pra cá. Disseram-me que corpos em decomposição têm de ser examinados no IML. Inclusive, enviaram um envelope com este documento.


Tratava-se de papel timbrado da Secretaria Estadual de Segurança Pública, intitulado: Requisição de Exame. O texto era bem formal:


"Encaminho ao Sr. Dr. Médico Legista do IML desta Comarca o material recolhido no cemitério local. Solicitamos o competente exame, objetivando constatar se se trata de carne humana ou feto, estando o material da mesma forma como foi encontrado. Nesta data, aguardo parecer."


O Dr. Maciel pediu que se esvaziasse o saco sobre uma mesa de granito claro, chamada de 'mesa de exame'. Cuidando para não receber respingo algum, quase dois passos distante da mesa, o sr. Winter desfez o nó do pacote e despejou tudo de uma vez.


Fim do suspense: ali jaziam vários exemplares de peixes podres, provavelmente comprados no supermercado há uns dois dias. Talvez fossem traíras ou cascudos, muito comuns por aquelas bandas. O médico e seu ajudante dispararam em gargalhadas. O sr. Winter não se conteve e pôs-se a xingar a corporação policial do seu distrito, chamando-os de incompetentes e outros adjetivos impublicáveis.


Mas dever é dever, e carecia responder à Requisição: a documento oficial dá-se resposta oficial, justificou o médico, procedendo minuciosamente à autópsia das piabas (seria esta a espécia aquática?) e elaborou o seguinte laudo:


"Na forma da lei, faço emitir o seguinte Laudo Necroscópico:

1. material enviado para exame em saco plástico onde se lê Supermercado Fome Zero;

2. odor fétido típico de material em decomposição;

5. composto de 15 exemplares adultos de Hyphessobrycon reticulatus ellis, vulgo lambari, peixes teleósteos caraciformes, da família dos caracídeos, medindo entre 5 e 12cm;

6. aparência compatível com óbito datado de 48h;

7. todos os exemplares exibem secção céfalo-caudal longitudinal mediana ventral, acompanhada de evisceração compatível com preparo para fritura;

8. guelras com acentuada hiperemia de esforço;

9. nadadeiras amputadas;

10. ferida perfurante na região periobicular, compatível com lesão por anzol.


Conclusão: Face às circunstâncias e aos achados, pode-se concluir, a priori, haver elementos suficientes para caracterização de lambaricídio doloso em série, com premeditação (fritura), por meio insidioso (retirada do meio líquido) e por meio cruel (morte por asfixia). Agravante: ocultação de cadáver.

Solicita-se da autoridade policial as medidas cabíveis.

Com elevada estima e consideração, Dr. Maciel."


Dura lex, sed lex.

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